domingo, 28 de outubro de 2012

Vidas Secas: obra-prima de um mestre


Em 27 de outubro, ou seja, ontem, comemorou-se o aniversário de nascimento de Graciliano Ramos, um dos três maiores romancistas da Literatura Brasileira (os outros são Machado de Assis – sem dúvida alguma – e Guimarães Rosa). E basta aproveitar essa data para observar atentamente Vidas Secas (1938), obra cobrada pelos exames da FUVEST-UNICAMP 2013, para perceber que essa qualificação não é injusta. Nela, o autor consegue mostrar-nos quais devem ser os elementos válidos para um texto literário, tanto na forma, quanto no conteúdo.
Inicialmente, deve-se começar pelo conceito básico de que literatura é a arte da palavra, ou seja, é o trabalho estético com a linguagem, o que configura a função poética, preocupada em destacar a maneira como a mensagem foi construída. Chama a atenção na narrativa sobre a vida de Fabiano e sua família o predomínio da ordem direta da oração, da frase simples e curta, da economia vocabular. Mas nada disso deve ser entendido como desleixo ou mesmo falta de estilo. Tudo é calculado, programado, denotando o clássico caso da simplicidade obtida com muito suor. A intenção é atender sua grande preocupação com a eficiência de comunicação, pois, como ele já afirmara, “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.
Entretanto, essa simplicidade não pode ser entendida como pobreza. Há poeticidade em Vidas Secas. Como simples exemplo, basta observar o seguinte trecho, retirado do penúltimo capítulo, “O Mundo Coberto de Penas”:

Alguns dias antes estava sossegado, preparando látegos, consertando cercas. De repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar destruição. Ele já andava meio desconfiado vendo as fontes minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes.

Nesse excerto há uma gradação na sequência “um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos, nuvens”. Há também hipérbole em “nuvens”. Há ainda metonímia na menção a riscos no lugar das próprias aves, assim como também em “rumor de asas”. Esses poucos elementos já são suficientes para provar a literariedade da linguagem desse romance.
Outro ponto positivo na elaboração textual de Vidas Secas está no ponto tão bem declarado por João Cabral de Melo Neto no poema que fez em homenagem a Graciliano Ramos: “Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol / que as limpa do que não é faca”. Há uma economia de elementos que acaba tornando-os extremamente significativos. O vermelho que está no cabelo, na barba e no rosto de Fabiano surge também no aspecto sinistro das tardes da seca. O azul de seus olhos está também no céu massacrante sem nuvem e que permite um calor abrasante. Ambos são representações do inferno, justamente a palavra cujo significado o menino mais velho quer saber. E, nesse campo, torna-se natural que as personagens se chamem ou se considerem condenados do diabo, excomungados.
Esses elementos já são suficientes para mostrar que Graciliano Ramos é um escritor de alta qualidade, pois domina os instrumentos que utiliza, ou seja, os mecanismos da linguagem literária. Mas a envergadura desse autor também se manifesta no campo do conteúdo. De uma maneira superior a Capitães da Areia, o autor critica as injustiças sociais provocadas pelas diferenças econômicas. Fá-lo sem cair no tom panfletário do livro de Jorge Amado. Fá-lo sem relegar a segundo plano o trabalho com o texto. Por causa desse fôlego analítico, Vidas Secas acaba saindo do âmbito do romance regionalista e se torna uma obra a criticar de maneira universal a opressão (que está em toda parte, na figura do soldado amarelo, do patrão, do fiscal da prefeitura, da seca, da chuva, do próprio Fabiano contra Sinha Vitória, dela contra o menino mais velho e da cadela Baleia), que é o seu grande tema.
Todavia, há outros assuntos a serem encontrados no presente romance. Temos a riqueza psicológica a mostrar que a pobreza a que suas personagens são submetidas, capaz de provocar um raciocínio embotado e uma linguagem deficiente, não retira delas um universo mental riquíssimo, cheio de remorsos, sonhos, preocupações, revoltas. Aliás, o emprego da palavra é outro tema importante e recorrente na obra, tornando-se preocupação vital de suas personagens. Fabiano queria falar como seu Tomás da bolandeira. O menino mais velho quer saber o significado do termo “inferno”. As duas crianças ficam admiradas com o monte de objetos que veem no capítulo “Festa” e chegam a duvidar que seres humanos sejam capazes de criar e saber o nome de todos eles. Quando Fabiano conta uma história em “Inverno” duas vezes e de formas diferentes, eles não acreditam que a realidade possa ser expressa de maneiras mudadas. Mas o mais importante é lembrar que o chefe dessa família tem sua integridade física e moral atropeladas nos capítulos “Cadeia” e “Contas” justamente porque não sabe falar direito.
É interessante lembrar que todos esses elementos temáticos são fruto das estruturas sociais injustas em que as personagens estão inseridas, tão fortes que, além de gerarem os problemas acima relatados, chegam até mesmo a retirar delas muito do caráter humano, tornando-as animalizadas, próximas, portanto, de Baleia, que por sua vez é humanizada graças ao seu companheirismo e afetividade.
Além disso, esse romance tem um lado tocante (apesar da frieza e imparcialidade do narrador), não só pelo apego que às personagens têm ao pouco que possuem, que na verdade não lhes pertence, mas também pelo universo psicológico delas (já citado) e principalmente por mostrar que, mesmo em face da desgraça, elas alimentam sonhos e esperanças.
Com base em tudo isso, pode-se então perceber o porquê de Vidas Secas ocupar um lugar especial – e de direito – entre as obras mais importantes da Literatura Brasileira. Tanto sua forma quanto o seu conteúdo são provas cabais de que Graciliano Ramos é senhor das ferramentas que utiliza, o que torna a leitura desse seu romance condição essencial para quem queira ter um repertório cultural digno.

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