quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Pica-Pau e Pernalonga - mais exageros de interpretação: a vez da psicanálise


No post anterior discutiu-se a over-interpretation, um problema comum àqueles que se apaixonam pela análise de textos. Usou-se como exemplo as leituras estranhas que surgiram sobre desenhos animados como Scooby-Doo, Bob Esponja, além do infantil Teletubbies. Ficou claro que tais erros teriam sido evitados se houvesse a preocupação de observar a obra como um conjunto e não simplesmente privilegiar um único ingrediente.
Na verdade, é comum muito dos clássicos infantis serem alvo predileto dessas interpretações, como se fossem vítimas ideais de teorias de conspiração a mostrar que não existe inocência nem mesmo no que degustávamos na aurora de nossas vidas. Parece que tal febre é fruto da popularização da psicanálise, ou do que ousa querer ser chamado por esse nome. É o que podemos ver quando se diagnosticou por aí que o Pica-Pau e Pernalonga tinham transtorno de sexualidade, pois se mostravam extremamente sádicos quando se vestiam de mulheres sedutoras. Como não resolveram seus próprios conflitos libidinosos, descarregaram violentamente seus dilemas eróticos em seus oponentes. Quadro pior é o do Piu-Piu, que não se sabe se é masculino ou feminino. Seu prazer em associar a dor alheia – no caso, do Frajola – a cinismo e ironia seria resultado de uma androginia recalcada.

Ilustração de Gustave Doré para Chapeuzinho Vermelho (1861)

Não se está dizendo, entretanto, que a psicanálise é imprópria para a intelecção de textos. Ao contrário, ela é bastante útil quando suas observações podem ser referendadas por outros elementos da obra. É o que pode ser visto nas célebres análises que Bruno Bettelheim fez no A Psicanálise dos Contos de Fada. Lá vemos, por exemplo, que Chapeuzinho Vermelho é a história da preocupação que deve ocupar a vida de toda aquela que acabou de se tornar mulher. Não é à toa que a cor que a caracteriza nada mais é do que referência à menstruação, sinal de que não se tem mais uma menina. Nesse código semântico, faz sentido o Lobo não atacar de forma violenta, mas por meio de um discurso sedutor, sugerindo à jovem que vá por um caminho cheio de flores, tradicionalmente símbolos dos prazeres da vida. Além disso, a protagonista pouco depois encontra o vilão justamente na cama, móvel carregado de simbologias sexuais. É justamente nela que safado diz à inocente: “Venha deitar-se do meu lado”. Por fim, é bastante significativo que o salvador da garota seja um caçador ou um lenhador (depende da versão). Qualquer um deles representa um homem mais evoluído, preocupado com comida ou aquecimento. Enfim, um digno mantenedor de uma casa. Um excelente partido. A mensagem, portanto, é um sinal de alerta – a mulher deve dar atenção não ao sedutor, que muitas vezes é enganador e só quer trazer malefícios; ela deve acreditar no responsável, trabalhador, que vai poder garantir-lhe conforto e bem-estar. Mais importante que os prazeres da vida – que podem levar à destruição – é a segurança.
Portanto, apresentou-se aqui mais uma interpretação que provocará o já referido içar de sobrancelhas. É uma análise surpreendente, que foge do convencional. O que a impede de ser descabida, como tantas outras tão ou mais conhecidas, é o fato de ela estar sustentada por vários elementos dentro do próprio texto. Essa é a condição para que a leitura se mostre eficiente.


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12 comentários:

  1. Admiro demaais teu trabalho !
    By: Corinthiaano :D

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  2. ↓ Turmas de maio - pinheiros - noturno .

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  3. Excelentes palavras. Texto muito cativante. Mesmo com as palavras de crítica ao meio psicológico atual, apresenta grande respeito aos profissionais da área. Ou melhor: aos que se dizem profissionais, porem somente frequentaram a faculdade, sem grande "aproveitamento" do conteúdo oferecido.

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    1. Obrigado pelas palavras bastante elogiosas. E eu faço questão de lembrar que só me coloquei contra aqueles que se dizem psicanalistas. Os verdadeiros, que fizeram mais do que somente frequentar a faculdade, têm uma profissão maravilhosa.

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    2. Só lembrando que não existe faculdade de psicanálise

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  4. "Androginia recalcada" e "transtorno de sexualidade"? Não creio que análises desse tipo caibam em desenhos destinados a crianças. A sexualidade não é acentuada em desenhos infantis (por razões óbvias) e o Pica-Pau se veste de mulher justamente com a finalidade de ferir o oponente, geralmente maior e mais forte, como faz o Coiote ao comprar as infalíveis armadilhas ACME.
    Entretanto, nem todas as histórias hoje destinadas a crianças surgiram com a finalidade de entreter, e a elas pode ser aplicada a psicanálise, como Chapeuzinho Vermelho e João e Maria. Este último, escrito, creio eu, na época da crise do feudalismo, mostra a fome que assolava a população devido à baixa produção e crescimento demográfico. Assim, as crianças são enviadas à floresta para que eles, seus pais, tenham chance de sobrevivência. Portanto, João e Maria são enviados para a morte certa. Encontram a casa da bruxa, feita de comida (delírio, fome). E, se não me engano, no fim desse conto, eles cozinham a bruxa e a comem (de novo, fome). Não é muito parecido com aquele conto fofo que lemos hoje em dia.

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    1. Boa, Jéssica. Tem mais, muito mais. Não se pode excluir seja qual for a área, só porque não se concorda com o conteúdo. Aliás, devemos nos perguntar o que tanto nos irrita diante de certos conteúdos, e não ficar se defendendo diante do que não entendemos. Caso contrário, voltaremos à Idade Média, das trevas.

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    2. Boa, Jéssica. Tem mais, muito mais. Não se pode excluir seja qual for a área, só porque não se concorda com o conteúdo. Aliás, devemos nos perguntar o que tanto nos irrita diante de certos conteúdos, e não ficar se defendendo diante do que não entendemos. Caso contrário, voltaremos à Idade Média, das trevas.

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