No post anterior, apresentaram-se alguns valores que tornavam válida a leitura de Capitães da Areia (1937), cobrada pelos exames da FUVEST-UNICAMP 2013. Algumas observações complementares precisam ser feitas.
Em primeiro lugar, essa obra não subiria ao pódio dos melhores livros do autor (que por sua vez não ocuparia as primeiras colocações entre nossos literatos...). À frente dela há Mar Morto (1936), Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), Gabriela, Cravo e Canela (1958) e o inigualável A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água (1961). Curiosamente, todos são textos em que o caráter panfletário, ou seja, a preocupação em transmitir ideais políticos não aparece. Há que se reconhecer, então, que é estranha sua presença (assim como a de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós) na lista de livros de dois grandes e respeitáveis vestibulares. Mas, já que está, desajuizado rejeitar esse livro e, (in)consequentemente, não observar alguns de seus ingredientes.
Já foi destacada a linguagem de Jorge Amado em Capitães da Areia. Em alguns momentos ela mostra o lirismo do narrador, emocionado com o assunto que aborda. Às vezes ele se mostra piegas, mas em boa parte delas é eficiente ao transmitir emoção. Além disso, há um intenso trabalho estético do texto, com o emprego de ritmo, musicalidade, figuras de linguagem, recorrência de termos, tornando sua prosa saborosamente poética. Por fim, a intenção em fazer a obra acessível ao maior número possível de leitores – o que é coerente com sua preocupação partidária – dá à coloquialidade um posto privilegiado, o que obtém resultado positivo, pois o autor é muito eficiente ao reproduzir o falar do povo.
Ademais, a coerência literária deve ser observada na narrativa dos meninos liderados por Pedro Bala. Como se trata de uma história com intenção de defender os ideais da revolução socialista, tudo nela precisa funcionar nesse diapasão. Dessa forma, colocar trombadinhas como heróis faz sentido, pois o que estão praticando não seria crime. Basta lembrar que Proudhon (1809-1865), um dos pensadores prediletos do anarquismo de esquerda, defendia que “toda propriedade é um roubo”.
Pode-se levantar como elemento que depõe contra a obra, entretanto, o estupro que o protagonista comete no final do capítulo “Docas”. É um acontecimento revoltante, sem dúvida, mas não há como negar que é fruto da confusão psicológica em que a personagem está e que só termina por complicar mais ainda o estado em que se encontra. Bala havia acabado de descobrir acontecimentos ligados à sua origem e principalmente ao seu pai, líder grevista assassinado por lutar pelos direitos dos trabalhadores. A violência sexual que o menino pratica é resultado da angústia e agonia em que a personagem se vê mergulhada. Na vida real é uma ação condenável. Mas se trata de literatura e precisa ser lida dentro do código estético estabelecido pelo autor. Do contrário, devemos mandar para o lixo obras infinitamente superiores como Memórias Póstumas de Brás Cubas com seu protagonista inútil e seu narrador petulante, autoritário e caprichoso; Viagens na Minha Terra com seu Carlos volúvel; Memórias de um Sargento de Milícias com sua ética flexível. Não devemos esquecer que arte é representação, não é a vida real. Ou, nos termos de René Magritte (1898-1967), “Ceci n’est pas un pipe”.
Percebe-se, pois, que a análise literária não deve se concentrar na ética praticada pelas personagens. Basta lembrar que em O Cortiço a canalhice pulula em todos os parágrafos e não transforma o romance em um feito deplorável do autor. Muito pelo contrário. Enfim, quando se observa a obra de Aluísio Azevedo, conclui-se que seu valor está na manipulação das estruturas literárias. Nesse rumo, se Capitães da Areia não é um ótimo romance, isso não se deve ao fato de lidar com ideais caducados do socialismo, com violência sexual ou com criminalidade. Isso se deve ao fato de Jorge Amado perder o controle de sua narrativa e forçar na história a entrada da utopia que defende de maneira a tornar o livro bobo. Não soube seguir o caminho de Drummond em A Rosa do Povo (1945), que defende o socialismo sem ser pedante, sem deixar de lado o valor estético de seus poemas.
Capitães da Areia é um bom romance. Para alguns, bastante humano, o que justificaria o sucesso que tem obtido desde sua estreia, empolgando muitos adolescentes até hoje. Possui defeitos deploráveis, principalmente no seu quarto final, o que dá a impressão de seu autor ter perdido o fôlego ou mesmo a inspiração apaixonante com que iniciara seu texto. Mas tais problemas não justificam que volte para a fogueira. Há o que se aproveitar nele.
Oi Laudemir, meu querido!
ResponderExcluirEu vi vc na revista Revide da semana passada, daí resolvi pesquisar sobre vc. Daí encontrei o blog, tua conta no Twitter... Não se preocupe: não sou um stalker, é que apenas eu gosto mto de vc! rs
Vc me deu aula no Curso Objetivo de Ribeirão em 2005. Eu era um dos que vc "atormentava" durante a aula. Logo, eu que sou mto tímido, que sempre quis passar despercebido!
Sempre me impressionou como vc memoriza os nomes dos alunos. Vc dá aulas em tantos Objetivos, e sempre lembra dos alunos (alguns deles) pelo nome!
Eu estava na turma que tinha o Danilo "bizunguinho", a Jane "me deixaaa", mas não sou nenhum deles. Vergonha de falar quem eu sou, rsrs
Faz 07 anos, mta coisa aconteceu... estou formado há quase 02 anos. Sinto mtas saudades daquela época... a vida era um pouco mais fácil.
Eu não tive mtos professores bons, nem mtos professores legais, tanto na educação básica como no ensino superior. Foram bem poucos: de se contar nos dedos de uma mão e ainda sobrar dedo! Mas tenha ctz que vc está entre eles!
Mto bom ter lhe conhecido e ter aprendido Literatura com vc. Grande abraço!
Poxa, é muito chato não poder saber a quem se está agradecendo. Ainda assim, muito obrigado pelos elogios muito tocantes, ainda mais por se basearem em elogios que resistiram ao mais terrível dos críticos, que é o tempo. Sete anos! Poxa! Obrigado mesmo!
ExcluirMuito válido esse post escrito pelo, na minha modesta opinião, genial Laudemir. Entretanto, algumas ressalvas devem ser feitas.
ResponderExcluirO trecho "A violência sexual que o menino [Pedro Bala] pratica é resultado da angústia e agonia em que a personagem se vê mergulhada." é questionável. Amado baseia o livro todo nesse tipo de desculpa para justificar os péssimos comportamentos dos capitães. Sob a luz da psicologia, a revolta contra o sistema só levaria a "vitima" a se voltar contra o mesmo e não contra as pessoas, numa violência sexual. Tanto isso é verdade que o estupro é considerado hediondo entre os detentos, que são os mais revoltados contra tal sistema.
Ademais, todas as artimanhas no "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ou as flexibilidades morais e vadiagens do protagonista de "Memórias de um Sargento de Milícias", não descem ao fundo do poço ético, como Jorge Amado o fez.
Mas concordo com seu ponto de vista, caro Laudemir: precisamos ver a arte como arte, e não como um manual de boas condutas. Mas o grande desafio, pelo menos para mim, é conseguir respeitar alguma que abdica dos valores morais mais básicos que constituem a sociedade.
Meu caro, de acordo com a psicologia, a revolta contra o sistema poderia ser descarregada em pessoas que não teriam nada a ver com o dono do poder. E lembre-se que no final do capítulo "Docas" o próprio Pedro Bala sente que não fez algo certo. E mesmo sendo considerado o mais hediondo dos crimes, até para os detentos, não deixa de ser praticado entre os criminosos. E Brás Cubas tem ações que descem ao fundo do poço ético. Lembre-se do que ele faz com Dona Plácida e com Eugênia. O problema é que, como ele é da classe alta, infelizmente outros valores são associados àquela personalidade que acabam ofuscando seu poço moral. Já em Pedro Bala isso não acontece. E lembre-se de que ele não abdica de todos os valores morais básicos - só abdica do que a nossa sociedade liga à posse, à propriedade. Você precisar ler esse livro dentro do diapasão do socialismo.
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