domingo, 5 de agosto de 2012

"Construção", de Chico Buarque - o diálogo entre forma e conteúdo em um texto literário


A análise de “Construção” (1971), de Chico Buarque, é um bom expediente para se saber o que torna literário um texto. Assim, um primeiro passo na busca desse entendimento é observar o título, ingrediente importante, capaz de transmitir pistas para a análise de uma obra. Inicialmente, a palavra construção é uma referência ao protagonista, operário da construção civil, o qual tem sua rotina quebrada por um acidente de trabalho. Acontecimento corriqueiro, entretanto, na época em que a música foi produzida.
No entanto, o que foi arrolado acima não é capaz de caracterizar um texto literário. Basta lembrar que a narrativa presente na letra de Chico Buarque contém elementos que também se encontram em vários relatos jornalísticos, o que a faz, no máximo, um documento sociológico. Então, onde está a sua literariedade?
Curiosamente é ainda o título da composição que dá pistas para a solução desse enigma. O importante em um texto literário, de fato, é a sua construção. Não devemos prestar atenção apenas ao seu conteúdo, mas também à forma como ele está sendo passado. Em outras palavras, sua confecção está ligada ao seu sentido.
Para entender o que se está afirmando, basta notar que “Construção” apresenta uma sequência de orações em que a variação é mínima. Assemelha-se à atividade do protagonista, que vai colocando tijolos lado a lado. Mas é também importante observar que essa estrutura acaba dando um ritmo repetitivo aos versos, o que mimetiza o cotidiano enfadonho da personagem. Sinal disso é verso 5, em que se compara o operário a uma máquina, desumanizando-o.
Entretanto, o que se apresentou até agora faz da letra um puro mimetismo mecânico, transformando-a apenas em um documento social. Há outros elementos a se observar para que se revele a genialidade dessa composição. É importante observar que todos os  versos têm no seu final palavras proparoxítonas, também chamadas esdrúxulas, pois são vocábulos tradicionalmente associados a um caráter exótico, estranho. Daí a poesia convencional proibir a sua utilização, ainda mais em uma posição de destaque como a rima. O emprego delas, e de forma tão intensa, só nos indica que se está lidando com algo esquisito, anormal. Mas o quê?
O verso 6 apresenta pistas cruciais para a interpretação da canção. Quando se afirma que o operário “ergueu no patamar quatro paredes sólidas”, insinua-se a ideia de cerceamento. Está-se, pois, diante de uma situação-limite. A partir de então, algo de muito interessante ocorre: a quebra da construção original. Tanto que no verso seguinte não se usa mais a linguagem lógica, convencional.  Manifesta-se então a explosão da conotação, que compromete a racionalidade da frase: como um operário pode usar magia em seu desenho? Abre-se espaço para que a linguagem figurada instaure outros sentidos, outras realidades.
De fato, na primeira parte da composição ocorre a abolição do real em que o protagonista está inserido, muito bem sintetizado no verso 8, em que se tem a imagem do cimento e lágrima embotando a visão do protagonista (deve-se lembrar que uma construção se faz misturando cimento a líquido). Há, portanto, uma intercomunicação entre o mundo exterior e o mundo interior da personagem, indicando o caráter doloroso do seu trabalho. E é nesse ponto sofrido que ocorre uma pausa, instauradora da desconexão do cotidiano. Não é à toa que a partir de então se intensificam as ousadias da linguagem conotativa: na vida do operário entram termos como “príncipe”, “naufrágio”, “dança”, “gargalhada”, “música”. Inicia-se um afastamento do cotidiano que não tem retorno. A única saída para essa situação crítica de estar entre “quatro paredes sólidas” é a morte, apresentada por meio de imagens belas: o tropeço no céu, que faz o operário flutuar no ar como um pássaro. Apesar do descaso que recebe: agonizou no meio do passeio público, atrapalhando a vidinha das outras pessoas. Note o belíssimo desfecho desse bloco, em que o som de algo impedindo uma fluência está na repetição de /tra/: “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.
A partir desse ponto, de liberação, ocorre também uma libertação sintática das orações, que começam a mostrar uma desarticulação do sentido original do primeiro bloco por meio da nova construção (quantas vezes essa palavra e seus sinônimos aparecem neste post?) dos versos. Parece haver aqui a indicação da necessidade de estabelecimento de uma nova realidade, tornada possível, pois que se baseia na recombinação de elementos já existentes no primeiro bloco.
A terceira parte é mais valiosa. Nela, o caráter caótico das notas musicais, mais agitadas e mais desencontradas, tem a ver com a lógica que é mais severamente arrebentada por meio de novas combinações, mais absurdas. Amor de máquina? Paredes flácidas? Beijo lógico? Flutuação de príncipe? Pacote bêbado?
Não se deve entender, entretanto, que o estabelecimento que aqui se faz de um outro mundo, desconectado radicalmente da lógica convencional, é uma fuga alienante, como faziam os parnasianos em suas descrições de vasos gregos. Na verdade, muitas vezes quando se dá a construção de outra realidade, totalmente absurda, o que se está fazendo é a crítica do sentido do nosso cotidiano. Esse mesmo fenômeno pode ser visto na novela de Dias Gomes, Saramandaia, de 1976. Se duas obras da mesma época revelam o mesmo desvio, então é vital ver o contexto em que foram concebidas.
A década de 1970 foi marcada pelo regime militar, com repressão que muitas vezes se manifestou na censura aos ideais artísticos. É também a era do milagre econômico, em que imperou o ideal de crescimento a qualquer custo. Esses dois pontos foram instituídos como a norma que não podia ser contestada. Daí o slogan “Brasil: ame-o ou deixei-o”. Nesse contexto, a quebra da lógica, tanto em “Construção” quanto em Saramandaia, traz um questionamento ao que estava sendo colocado como padrão para a sociedade brasileira, que no fundo não passava de mera construção e que, portanto, não poderia ser submissamente aceita como correta. A quebra da lógica faz, portanto, com que se enxergue a esquisitice do que foi constituído como normalidade.
Enfim, com base em tudo o que foi exposto, pode-se entender que o caráter de um texto literário está na transmissão de uma ideia por meio do perfeito casamento entre forma e conteúdo. O que torna “Construção” uma das mais preciosas joias da cultura brasileira.

7 comentários:

  1. Muito bom!! Infelizmente existem pessoas com um nível de cultura inferior (eu, no caso), então não tenho nada a acrescentar sobre o texto... Mas a cada vez que venho aqui no blog vou enriquecendo minha opinião e minha cultura, não só com o texto, mas também com os comentários que o pessoal deixa. Grande abraço Professor.

    Plínio

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    1. Não se menospreze, Plínio. E não existe esse negócio de nível de cultura inferior. Além disso, você tem muito o que acrescentar, não só com suas visitas, mas com seus comentários. Não tenha vergonha. Expresse-se aqui, viu?

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  2. É engraçado como a melodia é utilizada para dar, a quem escuta a música, a sensação de se estar em uma metrópole. Os sons fazem referência aos barulhos do cotidiano (carros, máquinas, pessoas...)
    Outra leitura que se pode fazer das '4 paredes', que é repetido na música em vários versos,além do significado de o homem estar enclausurado pela ditadura, é a queda da 4ª parede, de Bertolt Brecht.
    Excelente crítica, Chico Buarque é, além de um excelente músico, um magnífico poeta.

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    1. Não tinha pensado nessa referência Brecht, Coslove. Você poderia me citar a fonte de onde você tirou essa informação? Fiquei bastante curioso.

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  3. a analise que fizeram desse texto é maravilhoso ainda mais que tem o acompanhamento da musica fica extraordianrio!!!

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  4. Laudelindo e Chico: ambos têm minha imensa admiração! Adorei o texto!

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