domingo, 26 de agosto de 2012

A Invalidez do Purismo na Arte



São comuns os comentários de que uma obra de arte, quando bem realizada, acaba prejudicada ou deturpada quando transposta para outro código. Assim, os filmes da série Harry Potter, por exemplo, são muito ruins quando comparados aos livros que lhes deram origem. Trata-se de uma posição purista que se mostra estrábica, primeiro porque não enxerga que as diferentes plataformas estéticas têm propriedades diferentes (um filme é feito de imagens, um livro é feito de palavras) que apresentam diferentes formas de degustação; segundo, porque não capta a riqueza de possibilidades que o trabalho estético oferece. Basta observar, para se comprovar o que se está defendendo, o vídeo acima, do grupo The Piano Guys (2011). É uma excelente releitura, com pitadas de pop e jazz, do já apaixonante Prelúdio da Suíte para Violoncelo Número 1 (1717-1721) de Bach (1685-1750), que pode ser apreciada em sua versão original no vídeo abaixo, célebre interpretação de Mstislav Rostropovich (1927-2007):


 Note que não houve prejuízo na passagem da obra original, tocada apenas com um violoncelo, para a de oito instrumentos, pois uma não arrancou a beleza da outra. Desmente-se, assim, o ideal de eugenia artística, infelizmente muito comum, ainda mais quando se trata de música erudita, principalmente a barroca. Houve até radicalismos que defendiam que tal só poderia ser apreciada com os instrumentos da época e como era tocada naquele período. Um exemplo desse esforço em trazer à tona a performance do período é a belíssima versão de "O Verão", de As Quatro Estações (1723) de Vivaldi (1678-1741), interpretada a seguir pelo I Musici (1988):


Vale a pena lembrar que o I Musici, especialista em Barroco, foi o responsável pela redescoberta desse estilo na segunda metade do século XX. Além disso, donos da segunda gravação dessa obra de Vivaldi, praticamente impuseram, involuntariamente, a maneira como essa peça passou a ser executada desde então. Não há o que se questionar quanto a esse trabalho de recuperação fiel do estilo de uma época. O que se critica aqui é o fanatismo segundo o qual qualquer alteração começou a ser vista como uma heresia. É por isso que muitos caturros torceram o nariz para versões como as de Nigel Kennedy:


Nigel Kennedy é um violinista com uma excelente formação erudita e que no meio da carreira tendeu para o pop. Tanto que a sua gravação de As Quatro Estações com o English Chamber Orchestra em 1989 vendeu mais de dois milhões de cópias, o que só alimentou as críticas azedas dos dogmáticos, que questionavam a maneira como esse artista se vestia, se penteava, como deixava a barba por fazer, tudo isso refletindo na maneira como tocava um dos ícones sagrados do Barroco. Note como ele quebra o protocolo ao bater o pé ou até mesmo dançar, incorporando a música e desestabilizando a suposta seriedade que seria esperada dos diferentes membros da orquestra. E o mais importante é que ele improvisa várias vezes, o que os puristas consideram uma grande heresia. Não percebem, porém, que a alma da música está preservada: a fúria da instrumentação imita a fúria de uma tempestade de verão. Além disso, esquecem-se de que essa prática que condenam era comum no Barroco. O próprio Vivaldi, talvez mais exibicionista do que Nigel Kennedy, fazia de suas partituras apenas uma base, que deveria ser complementada pela sua performance. O que esses caquéticos não enxergam, portanto, é que os próprios criadores do tão sagrado estilo já praticam a transcodificação. Basta ouvir o Concerto para Quatro Cravos (1730), de Bach:


Trata-se de uma peça que Bach compôs para ser tocada com seus filhos e seus alunos e que acabou se tornando, principalmente a partir do filme Ligações Perigosas (1988), um dos ícones da música antiga, principalmente por causa da exótica sonoridade um tanto agressiva do cravo, o qual tirava suas notas por meio de pequenos ganchinhos que, acionados pelo teclado, triscavam as cordas. É, na verdade, o avô do piano, que, como o nome diz (piano em italiano quer dizer “suave”), produz uma sonoridade mais delicada ao fazer martelinhos baterem nas cordas. Para sentir a diferença, veja a versão dessa composição para piano, aliás, com quatro grandes intérpretes, Evgeni Kissin (de smoking branco), Martha Argerich, Mikhail Pletnev e James Levine (de óculos):


Óbvio: os puristas chegam a abominar essa versão, pois está em um instrumento que não existia à época em que a composição fora elaborada. Entretanto, esse argumento vai por terra quando se levanta um simples fato: essa peça é uma transposição que o Bach fizera de uma obra de Vivaldi, o Concerto para Quatro Violinos (1711), que pode ser vista nesta versão, que conta com um dos melhores violinistas da atualidade, Itzhak Perlman:


Enfim, os exemplos apresentados acima são suficientes para que se entenda a incompetência do purismo estético que desvaloriza uma obra por ser uma adaptação de outra, ainda mais quando esta se dá pela transposição de códigos. Na verdade, como já se disse, ambas as pontas não têm nada a perder. Além disso, a arte é, como toda manifestação humana, um campo livre e que ninguém consegue tolher completamente, nem mesmo a azeda sanha censuradora desses guardiões. Por mais que protestem, por mais que berrem, será em vão. Ainda bem.

2 comentários:

  1. Ainda bem mesmo! Vemos também que alguns artistas da atualidade como Lady Gaga que usou de "Czardas" (http://www.youtube.com/watch?v=bDxjKhesEGg) de Vittorio Monti para fazer a melodia de "Alejandro" (http://www.youtube.com/watch?v=niqrrmev4mA) e Evanescence que usou de "Lacrimosa" (http://www.youtube.com/watch?v=G-kJVmEWWV8), musica da ultima composição de Mozart, o Requiem, para fazer parte da sua musica "Lacrymosa" (http://www.youtube.com/watch?v=DtQSu9J8ogI), citei esses exemplos pq eu particularmente gosto muito das 4 composições, porém são estilos diferentes... aaahhh, e não podemos esquecer que o "Preludio em Dó maior" de Bach (http://www.youtube.com/watch?v=jz68jQOuyQk) inspirou Franz Schubert a compor "Ave Maria" (http://www.youtube.com/watch?v=sZoZwdesumY&feature=related), e convenhamos que as duas musicas são LINDAS!!!) Fica claro que com musica da pra se fazer tudo, compor e recompor em cima das mesmas notas, não agradando a todos, mas é bem interessante de ouvir e conhecer essas diversificações!

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  2. Concordo com você - não há a necessidade de agradar a todos. Mas essa comunicação de plataformas só tem a enriquecer a experiência artística. Creio que não se deve tolher a criatividade. É disso que a arte é feita, Raphaël!

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