São comuns os comentários de que uma
obra de arte, quando bem realizada, acaba prejudicada ou deturpada quando
transposta para outro código. Assim, os filmes da série Harry Potter, por exemplo, são muito ruins quando comparados aos
livros que lhes deram origem. Trata-se de uma posição purista que se mostra
estrábica, primeiro porque não enxerga que as diferentes plataformas estéticas
têm propriedades diferentes (um filme é feito de imagens, um livro é feito de
palavras) que apresentam diferentes formas de degustação; segundo, porque não
capta a riqueza de possibilidades que o trabalho estético oferece. Basta
observar, para se comprovar o que se está defendendo, o vídeo acima, do grupo The
Piano Guys (2011). É uma excelente releitura, com pitadas de pop e jazz, do já
apaixonante Prelúdio da Suíte para
Violoncelo Número 1 (1717-1721) de Bach (1685-1750), que pode ser apreciada
em sua versão original no vídeo abaixo, célebre interpretação de Mstislav
Rostropovich (1927-2007):
Note que não houve prejuízo na passagem da
obra original, tocada apenas com um violoncelo, para a de oito instrumentos,
pois uma não arrancou a beleza da outra. Desmente-se, assim, o ideal de eugenia
artística, infelizmente muito comum, ainda mais quando se trata de música
erudita, principalmente a barroca. Houve até radicalismos que defendiam que tal
só poderia ser apreciada com os instrumentos da época e como era tocada naquele
período. Um exemplo desse esforço em trazer à tona a performance do período é a
belíssima versão de "O Verão", de As
Quatro Estações (1723) de Vivaldi (1678-1741), interpretada a seguir pelo I
Musici (1988):
Vale a pena lembrar que o I Musici,
especialista em Barroco, foi o responsável pela redescoberta desse estilo na
segunda metade do século XX. Além disso, donos da segunda gravação dessa obra
de Vivaldi, praticamente impuseram, involuntariamente, a maneira como essa peça
passou a ser executada desde então. Não há o que se questionar quanto a esse
trabalho de recuperação fiel do estilo de uma época. O que se critica aqui é o
fanatismo segundo o qual qualquer alteração começou a ser vista como uma
heresia. É por isso que muitos caturros torceram o nariz para versões como as
de Nigel Kennedy:
Nigel Kennedy é um violinista com uma
excelente formação erudita e que no meio da carreira tendeu para o pop. Tanto
que a sua gravação de As Quatro Estações
com o English Chamber Orchestra em 1989 vendeu mais de dois milhões de cópias,
o que só alimentou as críticas azedas dos dogmáticos, que questionavam a
maneira como esse artista se vestia, se penteava, como deixava a barba por
fazer, tudo isso refletindo na maneira como tocava um dos ícones sagrados do
Barroco. Note como ele quebra o protocolo ao bater o pé ou até mesmo dançar,
incorporando a música e desestabilizando a suposta seriedade que seria esperada
dos diferentes membros da orquestra. E o mais importante é que ele improvisa
várias vezes, o que os puristas consideram uma grande heresia. Não percebem,
porém, que a alma da música está preservada: a fúria da instrumentação imita a
fúria de uma tempestade de verão. Além disso, esquecem-se de que essa prática
que condenam era comum no Barroco. O próprio Vivaldi, talvez mais exibicionista
do que Nigel Kennedy, fazia de suas partituras apenas uma base, que deveria ser
complementada pela sua performance. O que esses caquéticos não enxergam,
portanto, é que os próprios criadores do tão sagrado estilo já praticam a
transcodificação. Basta ouvir o Concerto
para Quatro Cravos (1730), de Bach:
Trata-se de uma peça que Bach compôs
para ser tocada com seus filhos e seus alunos e que acabou se tornando,
principalmente a partir do filme Ligações
Perigosas (1988), um dos ícones da música antiga, principalmente por causa
da exótica sonoridade um tanto agressiva do cravo, o qual tirava suas notas por
meio de pequenos ganchinhos que, acionados pelo teclado, triscavam as cordas.
É, na verdade, o avô do piano, que, como o nome diz (piano em italiano quer dizer “suave”), produz uma sonoridade mais
delicada ao fazer martelinhos baterem nas cordas. Para sentir a diferença, veja
a versão dessa composição para piano, aliás, com quatro grandes intérpretes,
Evgeni Kissin (de smoking branco),
Martha Argerich, Mikhail Pletnev e James Levine (de óculos):
Óbvio: os puristas chegam a abominar
essa versão, pois está em um instrumento que não existia à época em que a
composição fora elaborada. Entretanto, esse argumento vai por terra quando se
levanta um simples fato: essa peça é uma transposição que o Bach fizera de uma
obra de Vivaldi, o Concerto para Quatro
Violinos (1711), que pode ser vista nesta versão, que conta com um dos
melhores violinistas da atualidade, Itzhak Perlman:
Enfim, os exemplos apresentados acima
são suficientes para que se entenda a incompetência do purismo estético que
desvaloriza uma obra por ser uma adaptação de outra, ainda mais quando esta se
dá pela transposição de códigos. Na verdade, como já se disse, ambas as pontas
não têm nada a perder. Além disso, a arte é, como toda manifestação humana, um
campo livre e que ninguém consegue tolher completamente, nem mesmo a azeda
sanha censuradora desses guardiões. Por mais que protestem, por mais que
berrem, será em vão. Ainda bem.
Ainda bem mesmo! Vemos também que alguns artistas da atualidade como Lady Gaga que usou de "Czardas" (http://www.youtube.com/watch?v=bDxjKhesEGg) de Vittorio Monti para fazer a melodia de "Alejandro" (http://www.youtube.com/watch?v=niqrrmev4mA) e Evanescence que usou de "Lacrimosa" (http://www.youtube.com/watch?v=G-kJVmEWWV8), musica da ultima composição de Mozart, o Requiem, para fazer parte da sua musica "Lacrymosa" (http://www.youtube.com/watch?v=DtQSu9J8ogI), citei esses exemplos pq eu particularmente gosto muito das 4 composições, porém são estilos diferentes... aaahhh, e não podemos esquecer que o "Preludio em Dó maior" de Bach (http://www.youtube.com/watch?v=jz68jQOuyQk) inspirou Franz Schubert a compor "Ave Maria" (http://www.youtube.com/watch?v=sZoZwdesumY&feature=related), e convenhamos que as duas musicas são LINDAS!!!) Fica claro que com musica da pra se fazer tudo, compor e recompor em cima das mesmas notas, não agradando a todos, mas é bem interessante de ouvir e conhecer essas diversificações!
ResponderExcluirConcordo com você - não há a necessidade de agradar a todos. Mas essa comunicação de plataformas só tem a enriquecer a experiência artística. Creio que não se deve tolher a criatividade. É disso que a arte é feita, Raphaël!
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