quarta-feira, 22 de agosto de 2012

"Sinnerman" e o Valor da Cultura Popular


Uma manifestação bastante valiosa para a construção e compreensão de nossa identidade é a cultura popular, a qual não deve ser confundida com o substrato mercadológico jogado ao povo na forma de um pobre séquito que parece só ter capacidade intelectual para se destacar por meio de onomatopeias, interjeições e grunhidos como tchus, tchas, tchês tchês rerês, ois, ois, ois. Muito longe disso. Está-se falando de um riquíssimo conteúdo que muitas vezes capta elementos que as produções elitizadas não conseguem vislumbrar.
Um bom exemplo desse poder é a música acima, “Sinnerman”, composição criada na virada do século XIX para o XX e que se tornou muito comum em cultos religiosos, como os que pouco Nina Simone frequentou durante a sua infância na igreja metodista. Curiosamente, a época em que essa obra nasceu foi marcada pelo pensamento positivista, que via na Ciência o instrumento de salvação do homem, já que Deus estava morto. Pelo menos era o que afirmava parte da intelectualidade de então. A crença na tecnologia estava representada, por exemplo, na afirmação arrogante proferida quando o Titanic saía, em 1912, do cais: “nem Deus afunda este navio”. A decepção não viria só com o choque contra o iceberg. Viria também dois anos depois com a deflagração da Primeira Guerra Mundial. Nossa civilização começava a sentir a frustração com relação às promessas de salvação por meio do progresso científico. Essa experiência dolorosa se tornaria uma das marcas do século XX.
“Sinnerman” funciona como uma reação a todo esse contexto. Nela se percebe a angústia do homem que perdeu o rumo. Note quantas vezes o verbo run é usado, sugerindo a ideia de que a existência é uma procura incessante e, por isso, angustiante por todo o dia (“all along dem day”). É o correr desenfreado e aparentemente inútil, é o “remexer de argila” (palavras de Cruz e Sousa em “Alma fatigada”), que o ritmo e a instrumentação frenéticos da música parecem sugerir.
O que desesperadamente busca o pecador (sinnerman)? Ele quer que o escondam (hide), o que no contexto também pode ser entendido como uma necessidade de acolhimento, de proteção diante de uma situação periclitante. O problema é que a pedra (rock), o rio (river), o mar (sea) e por fim até o próprio Senhor (Lord) negam essa solicitação. Configura-se aqui uma condição desesperada do eu lírico, muito bem expressa por imagens apocalípticas: o rio e o mar estão sangrando (bleedin’) e fervendo (boilin’). Em uma conjuntura tão crítica, torna-se supreendentemente coerente a resposta cortante e agressiva de Deus ao clamor do homem: “vá para o diabo” (“go to the devil”). É certo que ela pode ser entendida apenas como uma orientação de que o pecador deve, por causa de suas faltas, dirigir-se ao diabo, que o está esperando (“he was waiting”), o que por si já é uma imagem terrível. Mas não há como negar que ela carrega também um peso de ofensa, o que seria inadmissível para o perfil tradicional que se tem do comportamento do Onipotente, costumeiramente solene.
Nesse ponto é possível perceber um caráter belamente complexo dessa composição, que escapa de rotulações cômodas e comodistas. A religiosidade se dá de forma ousada, desafiadora, como se percebe em “Don’t you see me prayin’?” (“Você não está me vendo rezar?”), que assume um tom de cobrança, o qual vai ser reforçado com “Don’t you know I need you?” (“Você não percebe que eu preciso de você?”). É o homem, que se acha poderoso, enfrentando Deus. Essa postura agressiva só pode ter como consequência (ou causa?) a detonação das já referidas imagens apocalípticas.
O que é valioso em “Sinnerman” é que essa composição se baseia numa relação de conflito entre o arrogante homem e o poderoso Senhor, que curiosamente chama seu opositor de “criança” (child), vocativo que mostra não só afetividade, mas também rebaixamento. É um vocábulo que prepara a resposta fulminante do Senhor: “onde você estava quando deveria estar rezando?” (“When were you/ When you oughta been prayin’?”). Faz lembrar a célebre resposta que Deus havia dado ao inconveniente questionamento de Jó. Faz lembrar também a sociedade atual, em que as pessoas são especialistas em cobrar seus direitos, mas maliciosamente esquecidas de cumprir seus deveres.
Enfim, esse embate revela um sincretismo não só entre petulância e humilhação, entre afetividade e agressividade, mas também entre religiosidade e a euforia que a música transmite. Para os partidários da tese de que o sentimento místico só pode ser expresso por meio de posturas solenes como a dos monótonos (nos dois sentidos) cantos gregorianos, o que se manifesta em “Sinnerman” seria um tremendo desrespeito diante do Senhor. Entretanto, deve-se ter em mente que a interpretação dessa música se dá de maneira entusiasmada, palavra em cuja etimologia está “theos”, que em grego significa “deus”. Assim, torna-se natural o fato de a experiência do divino dentro de si ser capaz de gerar essa euforia tão comum aos encantadores cultos religiosos dos negros norte-americanos (berço de "Sinnerman"), que, se por um lado revelam a herança africana dos espíritos que incorporavam em seus médiuns, por outro denunciam a filiação ao ideal cristão do pentecostalismo, isto é, da manifestação do Espírito Santo tomando conta do corpo do fiel.
Portanto, graças a tudo o que foi discutido aqui, pode-se entender que a cultura popular possui ingredientes valiosíssimos que precisam fazer parte do repertório intelectual daquele que se propõe analisar não só textos, mas também a sociedade em que está inserido. Dessa maneira, ela precisa ser respeitada e, acima de tudo, usufruída.

3 comentários:

  1. Excelente interpretação Laudemir, a música é muito rica. Bons músicos conseguem refletir esses sentimentos que se passam na sociedade, me lembrei de John Lennon e "God", quando ele diz "The dream is over..", cantando talvez o mundo sem perspectiva da década de 70, recessão econômica nos EUA, Guerra do Vietnam, o mundo começando a enxergar os problemas ambientais, na década anterior aconteceu Woodstock, os hippies literalmente "chutando o balde". Não havia mais em que acreditar. Gostei muito da sua descoberta.

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    1. Nossa! Como você sabe que foi descoberta? Eu sou fã de Nina Simone, mas nunca tinha ouvido essa música. Um aluno de Ribeirão Preto que me passou ela pelo Face, porque eu tinha postado outra.
      E quanto à relação que você fez com "God", confesso que não conheço essa música. Não gosto do John Lennon. Mas você montou um perfil correto do contexto dos anos 70. Só podiam dar mesmo no recrudescimento da Era Reagan.

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  2. Professor, obrigado por essa análise maravilhosa. Mesmo com quase 5 anos de atraso, após essa leitura, vou dedicar um tempo a seus outros textos, seguro que será um conteúdo maravilhoso.

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