No post anterior foi trabalhado o “Elegia 1938”, do livro Sentimento do Mundo (1940), de Carlos Drummond de Andrade. Este poema terminava com a célebre estrofe:
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Notou-se nesse trecho a inquietação de um eu lírico que reconhece o mal e, pior do que não fazer nada contra ele, render-se, permitindo que se perpetue. É a expressão de uma beleza sangrada, da qual Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012) também foi tocado.
De certa forma, esse filme é repetição do anterior, Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), pois desenvolve o tema do herói não compreendido e renegado. Talvez esse seja vício de terceiro volume de trilogia. É um defeito que pode tornar o filme prolixo, com a repetição até mesmo de cenas de episódios anteriores. A sorte é que na película em análise essas recorrências não enfraqueceram a obra, pois foram breves, servindo para não deixar perdido o espectador desmemoriado ou ignorante dos capítulos anteriores.
Mas a repetição não se restringiu a esses aspectos dramatúrgicos. Alcança também o nível temático, provocando mais uma vez mal-estar na parte pensante do público. Esse incômodo fora provocando em 2008 pela figura do Coringa, que se revelou a nossa sombra (no sentido junguiano), a nossa essência maligna, o psicopata que possuímos latente, mas que a todo custo ocultamos. Não é à toa que Joker (o nome original da personagem) quer dizer não só o que brinca, mas a parte oculta e ambígua de um contrato, anulando seu efeito. E o interessante é que rejeitamos esse nosso ingrediente negativo de forma muitas vezes tão violenta (será medo?) e ainda assim ele está lá, vivo, como se se alimentasse disso. Não era o que se via nas cenas em que o vilão era espancado por um e por outro?
Enfim, essa negatividade, inevitável, só não domina a nossa sociedade porque é impedida por algo dentro de nós. Prova disso é que nossa civilização não sucumbiu (ainda) à barbárie. Prova disso é que no filme de 2008 a decisão de não explodir os navios viria de um presidiário, sinal de que até um bandido tem essa trava de segurança ativada. Tal torna a nossa realidade complexa, bem diferente da visão de outras versões saudosas e maniqueístas de Batman, em que o mal era caricaturescamente sempre o mal e o mocinho tinha sempre um comportamento de mocinho.
No entanto, a realidade nos empurra para questões muito complicadas e tensas: como separar o bem do mal? Vemos um Batman que, cansado do sistema, não se preocupa em prender um bandido (sabe que será solto logo depois), mas em quebrar-lhe as pernas. Vemos um homem bom, Harvey Dent, tornar-se vilão ao lutar por justiça. Vemos o herói assumir a culpa por um crime para que o bem triunfe – o bem precisa do mal, da mentira? Mas esses são temas do capítulo II da trilogia, válidos para o III, ainda assim, devemos nos concentrar no que foi apresentado agora em 2012.
Notamos que em Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge o mal não é apenas psicológico. É uma doença social. A lama, a sujeira está por toda parte. É a tal corrente mencionada pelo Comissário Gordon. Mas não a vemos. Ou não queremos vê-la. Daí o dito da Mulher Gato, dirigindo-se ao milionário Bruce Wayne: “[vocês] vão se perguntar como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto de nós?”. “A injusta distribuição”, denunciada por Drummond em “Elegia 1938”, mas que acaba sendo aceita. E aí está a causa dos males da doença de nosso tempo. Ou a consequência?
Há um eco de Rousseau aqui: desde o momento em que um homem começou a ter só para si a provisão que seria suficiente para dois, a sociedade começou a fracassar. “A injusta distribuição”. “Como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto de nós?”. Expôs-se a ferida. Mas, apesar dessa consciência, praticamente nada de eficaz foi feito. O fato é que essa doença está apaticamente em toda parte. E somos todos culpados por ela. Qual a saída? Alienar-se, como os “Inocentes do Leblon”, outro poema de Sentimento do Mundo? Mas essa solução é inútil, pois não impede a chegada da tempestade social (se é que já não estamos nela). Recomeçar tudo do zero, como tanto quer a Mulher Gato? Mas esse caminho também não é eficiente, pois tem alcance individualista. Ou adotar a postura de Bane, com um gosto anarquista à John Zerzan, que consiste na destruição da atual sociedade?
A exposição dessa situação de ausência de saída torna o filme bastante valioso. Mas há outros aspectos relevantes, como a constante referência a subterrâneos e a necessidade de ascensão. Toda uma camada desprezada da sociedade de Gotham City vai viver nos esgotos, onde encontra melhores oportunidades de vida, formando um exército perigosíssimo. Não é uma metáfora do que atualmente está acontecendo? Essa imagem tem um ar novo, pois substitui a velha alegoria hollywoodiana de extraterrestres destruindo a sagrada civilização. O inimigo não é mais externo. Está aqui mesmo. No nosso subsolo. E é cria nossa.
O problema é que os grandes mentores do novo caos em que Gotham City se vê mergulhada são externos, são do antigo mundo dominado por déspotas, o que faz lembrar o temido oriente dominado por fundamentalistas não-cristãos. E é nesse ponto que o filme mostra um fio desencapado que pode atentar contra a lógica da trama. Se a dor dos vilões (na verdade outras vítimas) foi provocada pelos desmandos do déspota de um país distante, porque dinamitar Manhatann, ou melhor, Gotham? A relação não ficou clara. Ou então é tão subterrânea que não é captada. Além disso, fica no ar a impressão de que Bane é uma evolução de Bin Laden, já que seu ataque também é vindo do oriente e perpetrado utilizando-se de elementos e até mesmo das instituições do ocidente. Mais desconfiança com relação aos "outros", que não pertencem à nossa civilização?
Outro ponto negativo do filme é a solução comercial que é dada à trama (é preciso vender, é preciso ter bilheteria, é preciso cumprir esses gestos universais que alimentam o sistema, como já dizia Drummond em “Elegia 1938”), mas essa é uma discussão à qual O Magriço Cibernético se furta para evitar spoiler.
Ainda assim, são defeitos que não destroem por completo a qualidade de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, pois não impedem que se vislumbre a problemática social arrolada acima. Não impede também que se capte a mensagem insistente do mordomo Alfred: a saída está no conhecimento compartilhado, na evolução moral do homem (daí o marcante coro que se ouve ao fundo no trailer, que significa "Suba!"), e não em soluções mirabolantes (ser Batman custaria hoje 1,4 bilhão de dólares) baseada em heroísmos adolescentes. Ou que se capte também a mensagem já presente no filme de 2008: o que mantém nossa civilização em pé é, apesar de tudo, a esperança e a confiança. De poucos, mas que são suficientes para tornar digna a espécie humana.
Posso ter feito uma leitura errada, mas insisto em olhar para o lado alienante feito por mais uma produção midiática hollywoodana.
ResponderExcluirFora a questão, por sinal muito bem observada, da analogia entre os atentados terroristas e a tentativa de destruição de Gotham, e entre Bane e Bin Laden, percebi que houve uma distorção dos conceitos anárquicos.
Se lembrarmos de que o Anarquismo basicamente é a transição para o Modo de produção Comunista, o qual busca a belíssima construção da "igualdade de condições", tanto defendida por Rousseau; o fim da exploração e, portanto o da repressão; e principalmente a extinção de toda forma de governo ilegítimo, baseando a autoridade em acordos; veremos a clara incompatibilidade com o Sistema criado entre as páginas do roteiro e encenado frente às câmeras. Se um governo anárquico é um governo horizontal, onde estaria a voz daqueles que foram julgados e condenados à morte no clímax do filme? A hierarquização da sociedade não fora excluída, apenas passada para as mãos de pessoas dicotomicamente malignas e imorais.
É difícil saber se um dia o Estado pode chegar à barbárie apresentada em Batman. Mas uma coisa (ainda) é certa, filmes são excelentes convites à passiva aceitação para continuarmos a ser espectadores da exploração feita pela oculta, mas ainda presente, classe burguesa.
Eu estava esperando que alguém fizesse um comentário como o que você fez, Jonas P. De fato, a mídia hollywoodiana tem uma forte tendência à alienação e ao consumo passivo dos produtos que ela quer nos impor. Você reparou os brindes que estão por aí associados à marca deste filme? Até o Habib's. Mas o que é interessante é que há, sim, certo conteúdo crítico. O problema é que poucos o percebem, infelizmente. Notam apenas os efeitos especias, as explosões, a briga - como se todos os problemas do mundo pudessem ser resolvidos na base do soco. Enfim, repito: há conteúdo nesse filme, mas ele estranhamente acabou disperso, nos subterrâneos. E talvez - esse é um ponto que eu não queria tocar no post, para não deixá-lo extenso - um dos problemas do filme foi ter oscilado entre ser uma obra de ação - alienante - e uma obra de reflexão - engajada. Não notou os descompassos entre o ritmo acelerado da ação e as falas extensas, carregadas de símiles, das personagens: "muitas vezes a grande ajuda pode ser simplesmente um blusa que se coloca sobre uma criança para mostrar que nem tudo está acabado" - essa foi a frase de Batman, prolixa, ainda mais num momento em que ele tem poucos minutos para tirar a bomba de Gotham.
ResponderExcluirEnfim, fico pensando no poder que o capitalismo tem (como dizia Marx, ele tem um poder de renovação e sobrevivência incrível). O filme acabou mostrando que o capitalismo consegue lucrar até com a veiculação de ideias que o atacam.
Quanto à noção de anarquismo, eu acho que houve no filme um caráter doutrinário. Bane promete a libertação, mas no fundo ele trouxe a subversão da ordem em que quem antes oprimia passou a ser oprimido e quem antes era oprimido passou a oprimir. Enfim, legitimou-se o sistema. Fica no ar a ideia de que qualquer tentativa de mudança radical do sistema pode ser um engodo - os líderes são no fundo autocráticos. Em outras palavras, parece haver a mensagem de "ruim por ruim, é melhor deixar como está".
Tb achei ambíguo o pto de vista político do filme. Houve necessidade de legitimação das ações supraconstitucionais do Batman (pois é um mal necessário devido à omissão do Estado) mediante um artifício de roteiro q nos impele decisivamente a tomar o partido dos poderosos qdo o Bane ameaça explodir tudo e principalmente qdo se dão os tribunais sumários parecidíssimos com os q ocorreram em Cuba e em tantos outros golpes de Estado. Fica às claras q estamos diante de uma destemperança exorbitante e, a partir daí, clamamos pelo cavalheiro das trevas para q tudo (infelizmente) volte a ser como antes. Pouco antes da tomada do poder pelos homens do subsolo, qdo a revolução toma as ruas e as pontes vão pros ares, tudo leva a crer q teremos uma nova e revigorante queda da bastilha. Eu estava esperando os nobres de Gothan serem indistintamente arremessados de suas coberturas luxuosas - e torci pra isso, pois toda revolução ceifa litros de sangue; sem falar na questão da verossimilhança q fica completamente trincada. Todas as decepções na história certamente são imposições da indústria q, para aumentar a bilheteria, meteu uma catadupa de restrições para diminuir ao máximo a censura em nome de dividendos. Lamentável. Achei q o próprio Bruce Wayne perdeu força dramática neste desfecho, pareceu-me um "joguete do destino" em estado de estupor, sem ter reação, diferente do Alfred e do Gordon q roubam a cena em iniciativas carismáticas e decisivas.
ResponderExcluirFiquei sem palavras por causa de seu comentário. Muito bem feito e tocou de maneira precisa em muitos pontos importantes do filme, principalmente os defeituosos. Pareceu-me que o filme tinha um material maravilhoso nas mãos de crítica social, mas não conseguiu manipulá-lo bem, talvez pelas próprias imposições da indústria cultural. Mas o que acho positivo é que ele colocou esses elementos no palco - ainda que eles não tenham entrado em ação da forma adequada, como você bem observou. Faz-me lembrar as inquietações do Drummond apontadas no post anterior: enxergar de maneira crítica, mas render-se à Grande Máquina, mergulhando no apatia. Ainda assim, é um bom filme.
ExcluirEu ainda não assisti o filme por isso não li esse post,tenho medo que tenha spoiler! haha
ResponderExcluirEntão não leia! Veja o filme primeiro, meu caro. Aí leia e quero ver seus comentários. Combinado?
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