No post de 24 de março de 2013 falou-se de como é importante prestar atenção ao
viés segundo o qual um texto é produzido. Ter consciência do ponto de vista do
enunciador faz com que se entenda o filtro que ele utiliza na expressão de suas
ideias e, assim, perceber suas limitações ou manipulações interpretativas. Em
outros termos, captar bem mais do que ele está declarando. No entanto, é também
interessante detectar quando o autor trabalha esse elemento para fazer com que
a voz enunciadora acabe afirmando mais do que aquilo que está literalmente em
suas palavras. É o que acontece na canção “The Fear” (2008), da britânica Lily
Allen. Nela, melodia, voz e letra assumem coerentemente um ar cândido, quase
infantil, por meio do qual o eu-lírico confessa suas preocupações fúteis: ser
uma bela celebridade endinheirada. É válido ler essa composição:
I want to be rich and I want lots of money
I don't care about clever I don't care about funny
I want loads of clothes and fuckloads of diamonds
I heard people die while they are trying to find them
I'll take my clothes off and it will be shameless
'Cause everyone knows that’s how you get famous
I'll look at the sun and I'll look in the mirror
I'm on the right track yeah I'm on to a winner
I don't know what's right and what´s real anymore
I don't know how I'm meant to feel anymore
When do you think it will all become clear
'Cause I'm being taken over by The Fear
Lifes about film stars and less about mothers
It's all about fast cars and passing each other
But it doesn’t matter cause I'm packing plastic
and that's what makes my life so fucking fantastic
And I am a weapon of massive consumption
and it’s not my fault it’s how I'm programmed to
function
I'll look at the sun and I'll look in the mirror
I'm on the right track yeah I'm on to a winner
I don't know what´s right and what´s real anymore
I don't know how I'm meant to feel anymore
When we think it will all become clear
'Cause I'm being taken over by The Fear
Forget about guns and forget ammunition
'Cause I'm killing them all on my own little mission
Now I'm not a saint but I'm not a sinner
Now everything is cool as long as I'm getting thinner
I don't know what´s right and what´s real anymore
I don't know how I'm meant to feel anymore
When do you think it will all become clear
'Cause I'm being taken over by fear
A letra mostra a sinceridade de frases
de um cinismo indecente: ” “everything is cool as long as I’m getting thinner” (“tudo
está bem desde que eu me torne cada vez mais magra”). Entretanto, a força desse
texto não está no seu aspecto literal, mas no que deixa mal escondido sob o
tapete. Para tanto, basta observar trechos como “It’s not my fault, it’s how
I’m programmed to function” (“Não é culpa minha, é como eu fui programada para
funcionar”), “I am a weapon of massive consuption” (“Eu sou uma arma de
destruição em massa”, em que “consuption” também está ambiguamente ligado a
consumismo, tema subjacente da canção), “cause I’m killing them all on my own
little mission” (“porque eu estou matando todos eles com minha própria pequena
missão”, em que “little” ganha uma força surpreendente para o sentido do
texto).
Lily Allen |
Mas o momento em que o aspecto crítico
se mostra mais escancarado é em “I want loads of clothes and fuckloads of
diamonds / I heard people die while they are trying to find them” (“Eu quero um
monte de roupas e uma porrada de diamantes / Eu ouvi dizer que pessoas morrem
enquanto tentam consegui-los”). Nele, há uma aparente desconexão entre os
versos. Aparente. Expõe-se aqui a relação entre a posse de diamantes, e todos
os valores de ostentação de luxo a que essa ação está ligada, e as condições
desumanas e sangrentas em que esse minério é extraído na África. Assim, está e
não está no texto uma crítica ao consumismo. A autora não precisou fazer um
ataque inflamado em terceira pessoa, um recurso mais comum, visto, por exemplo,
na instigante canção “Stupid Girls” (2006), da norte-americana Pink:
Para se ter uma ideia da virulência do
ataque dessa composição, é importante uma rápida leitura de sua letra:
Stupid girls, stupid girls,
stupid girls
Maybe if I act like that, that guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, that guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Go to Fred Segal, you'll find
them there
Laughing loud so all the little people stare
Looking for a daddy to pay for the champagne
(Drop a name)
What happened to the dreams of a girl president
She's dancing in the video next to 50 Cent
They travel in packs of two or three
With their itsy bitsy doggies and their teeny-weeny tees
Where, oh where, have the smart people gone?
Oh where, oh where could they be?
Laughing loud so all the little people stare
Looking for a daddy to pay for the champagne
(Drop a name)
What happened to the dreams of a girl president
She's dancing in the video next to 50 Cent
They travel in packs of two or three
With their itsy bitsy doggies and their teeny-weeny tees
Where, oh where, have the smart people gone?
Oh where, oh where could they be?
Maybe if I act like that, that
guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
(Break it down now)
Disease's growing, it's epidemic
I'm scared that there ain't a cure
The world believes it and I'm going crazy
I cannot take any more
I'm so glad that I'll never fit in
That will never be me
Outcasts and girls with ambition
That's what I wanna see
Disasters all around
World despaired
Their only concern
Will they fuck up my hair
Disease's growing, it's epidemic
I'm scared that there ain't a cure
The world believes it and I'm going crazy
I cannot take any more
I'm so glad that I'll never fit in
That will never be me
Outcasts and girls with ambition
That's what I wanna see
Disasters all around
World despaired
Their only concern
Will they fuck up my hair
Maybe if I act like that, that
guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
(Do ya thing, do ya thing, do ya
thing)
(I like this, like this, like this)
Pretty will you fuck me girl, silly as a lucky girl
Pull my head and suck it girl, stupid girl!
Pretty would u fuck me girl, silly as a lucky girl
Pull my head and suck it girl, stupid girl!
(I like this, like this, like this)
Pretty will you fuck me girl, silly as a lucky girl
Pull my head and suck it girl, stupid girl!
Pretty would u fuck me girl, silly as a lucky girl
Pull my head and suck it girl, stupid girl!
Maybe if I act like that,
flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, stupid girl!
Push up my bra like that, stupid girl!
Maybe if I act like that, that
guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flipping my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flipping my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
A crítica de Pink é também ácida. Basta
notar a corrosão que é feita não só no título e na abertura da composição, que
ofende o alvo da crítica, mas também no trecho “What happened to the dreams of
a girl president / She's dancing in the video next to 50 Cent” (“O que
aconteceu com os sonhos de uma garota presidente? / Ela está dançando no vídeo
junto a 50 Cents”). Condena-se a estúpida vacuidade a que o gênero feminino é condenado pela sociedade, qualidade ilusoriamente vista como positiva. Trata-se do desmascaramento da ideologia, assunto já comentado no post de 14 de abril de 2013. É certo que ocorre também o uso da primeira pessoa, como no
texto de Allen, mas o importante aqui é notar a diferença entre alguém de fora
atacar, ou seja, a crítica ser feita em terceira pessoa, recurso ao qual nós
estamos acostumados, e a criatividade em se dar voz ao próprio setor a ser
vilipendiado. Seu próprio discurso o condena. Assim, o viés acaba sendo
manipulado para produzir efeitos retóricos surpreendentes. No caso mais
rotineiro, pode-se até pensar que o discurso de Pink seria baseado na inveja, o
que seria mais difícil de apontar no texto de Lily Allen.
Pink |
Esse poderoso recurso é sabiamente
explorado em clássicos como Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom
Casmurro (1899), de Machado de Assis. Neles, o Bruxo de Cosme Velho dá a
voz a membros da elite brasileira que, por meio de seu discurso, acaba pondo a
nu o vazio da existência de seus membros, entregues ao tédio, ao autoritarismo
e a um comportamento caprichoso garantido por uma folgada condição econômica.
Assim, Brás Cubas pode explorar a miséria de Dona Plácida ou brincar com as
esperanças da nobre Eugênia. Pode ainda escrever de maneira digressiva, sem respeitar
o ritmo ou à paciência do leitor. E no fim confessar que tudo isso é natural e
até correto. O mesmo ocorre com Bentinho, que, apoiado em uma sociedade
patriarcal, pode sufocar a energia de vida da brilhante Capitu, até fazê-la
perecer moral e fisicamente no exílio, tudo em razão das vontades mimadas de um
adulto que não largou a infância.
Machado de Assis |
Enfim, os exemplos acima são bastante
convincentes para que se entenda que o viés é um elemento importante para a
construção e principalmente interpretação de um texto. Prestar atenção ao ponto
de vista do enunciador ajuda a entender o universo consciente e até
inconsciente do ato de enunciação, o que contribui saborosamente para a riqueza
da leitura.
Resumos, análises e comparações.
Para comprar o seu,
Texto magnífico, como sempre. Brilhante. Parabéns
ResponderExcluirMuito obrigado!
ExcluirSensacional!
ResponderExcluirEstou viciando no " Magriço "
Muito bom!
Muito obrigado! E que bom que você esteja tendo um vício bom...
ExcluirLaulau, parabéns!Ótimo texto =)
ResponderExcluirMuito obrigado, pequenino!
ExcluirMuito bacana, Lau! Gosto muito quando você coloca músicas em seus posts... Me faz vê-las com outros olhos!
ResponderExcluirObrigado pelo elogio. E gosto muito quando você lê e comenta meus posts. Ajudar a dar vida a ele.
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