Em vários momentos aqui nO Magriço Cibernético foi dito que um
texto é mais do que um amontoado de palavras e frases. É necessário que esses
elementos estabeleçam ligação entre si, formando um conjunto coeso e coerente.
É esse requisito que garantirá o seu sentido. Em outras palavras, para poder
captar o significado de um texto, é preciso prestar atenção às relações que
seus ingredientes estabelecem entre si. Não se deve, portanto, olhar para um só
ponto e a partir apenas dele supor que se obterá a chave para desvendar o
conjunto em que está inserido. Fazer isso é mostrar-se inábil em leitura e
interpretação.
O texto acima (e vídeo não deixa de ser
um) é exemplo do que se está afirmando. Trata-se de um trabalho que Nima Raoofi
fez para o seu curso no MAPS Film School e que acabou se tornando viral. Nele, percebemos
o quão importante é a relação de elementos para a composição de sentido. Sua história
é bastante simples e tem como tema a inveja, vista de maneira negativa. Apresenta,
portanto, uma moral que ataca quem reclama das condições de vida em que se
encontra, sem valorizar as dádivas que já possui. Valorize o que você tem, não
se preocupe com os outros.
Entretanto, para a discussão que está
sendo desenvolvida aqui, é interessante notar uma questão bastante delicada:
qual o tom do texto de Nima Raoofi? Ele tem um final inesperado, que subverte as
expectativas que vinham sendo montadas (apesar do fato de que algumas pistas já
mostradas desde o início já serem capazes de tornar o desfecho previsível), o
que aproximaria sua estrutura de um texto humorístico, como uma piada. Mas não seria
estranho fazer graça a partir de um defeito físico? Ou estaríamos diante de um caso
de humor negro?
Nenhuma
das possibilidades apresentadas acima sustentaria uma análise eficiente,
justamente por ignorar o conjunto. Para tanto, basta observar, por exemplo, a música
que toca por toda a peça, um piano bastante comovente, que se mostra coerente
com a frágil beleza do tema da infância. Não é comovente a fantasiosa conversa
que o menino pobre faz entre os seus dois tênis velhos e surrados? Tudo isso
desautorizaria a ideia de que se está lidando com humor negro.
Na verdade, My Shoes integra o volumoso time dos textos que apresentam elementos
do cômico, mas que não o são. Podem até ser entendidos como tragicômicos, mas
nunca como peças de humor. Vemo-lo, por exemplo, em O Primo Basílio, de Eça de Queirós, em que testemunhamos a sucessão
de desgraças que compõe a vida de personagens como D. Felicidade, mulher de
mais de quarenta anos e virgem – toda afeição para quem ela havia se dedicado
nunca dera fruto. Ou mesmo Juliana, que gastara sua existência dedicando-se a
patroas de boa vida e ilimitada ingratidão. Ou ainda em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assim, em que
encontramos D. Plácida e sua vida que se resumia apenas a um acúmulo de
misérias e decepções. E por que nenhum desses quatro exemplos pode ser
entendido como texto humorístico? Justamente porque o contexto em que estão
inseridos não o permite. Todavia, nada impede que esses mesmos elementos,
colocados em outro conjunto, em outra combinação de signos, serviriam para
produzir como resultado a comédia.
A lição que mais uma vez e sempre se
tira de tudo o que foi abordado aqui é que a leitura eficiente tem como
condição essencial a atenção a todos os elementos que compõem um texto, sem que
um ingrediente, por mais interessante que seja, se sobressaia ao outros.
Resumos, análises e comparações
dos livros da
FUVEST-UNICAMP 2014
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