No post de 01 de maio de 2013, por meio da letra de “Meninos e Meninas”, do Legião
Urbana, viu-se que é errada a ideia de que existiria um português errado simplesmente
por causa da troca de pessoas e de pronomes. Ficou claro que a língua, como uma
manifestação humana, tem várias formas de se concretizar, o que faz com que o
mais importante não seja se preocupar com certo ou errado, mas com o adequado
ou não ao contexto em que se está usando a comunicação. Assim, situações
informais pedem uma linguagem mais próxima do coloquial, enquanto as formais exigem
um apego à norma culta.
O problema, como foi dito, é que a norma
culta, que é ensinada em sala de aula nas aulas de Gramática, é a mais bem
conceituada por ser associada à fala das elites, dos indivíduos que têm
prestígio na sociedade. Não que esses de fato a dominem ou – pior – a usem. Mas
qualquer pessoa que queira ser aceita e até respeitada precisa utilizar esse
padrão linguístico. Preconceito, mas um fato.
É também uma visão distorcida a ideia de
que só a norma culta tem regras, só ela é organizada e lógica, por isso
mereceria o status de linguagem bem
constituída. As demais variedades da língua, chamadas de português não-padrão,
também são sistemáticas, o que equivale a dizer que não são erradas. Basta conferir
a letra dessa joia composta por Adoniran Barbosa e cantada pelos Demônios da
Garoa.
AS
MARIPOSA
As mariposa
quando chega o frio
Fica dando vorta
em vorta da lâmpida pra si isquentá
Elas roda, roda,
roda e dispois se senta
Em cima do prato
da lâmpida pra descansá
Eu sou a lâmpida
E as muié é as
mariposa
Que fica dando
vorta em vorta de mim
Todas noite só
pra me beijá
- Boa noite,
lâmpida!
- Boa noite,
mariposa!
- Pelmita-me
oscular-lhe as alfácias?
- Pois não, mas
rápido porque daqui a pouco eles mi apaga.
Vale ressaltar a força que o padrão
culto tem: o nome da composição é “As mariposa”, mas constantemente seu título
vem grafado respeitando a norma culta (“As mariposas”), provavelmente porque a forma
escrita é mais facilmente presa aos ditames gramaticais.
Mas detenhamo-nos na análise desse
padrão linguístico para provar que não se trata de manifestação de erro, mas de
um código com suas regras de funcionamento. A primeira delas diria respeito a
economia, o que se percebe na flexão do plural. Observe que essa marca aparece
apenas na primeira palavra de uma expressão: “as mariposa”, “as muié”, “elas
roda”, “todas noite”. O único momento em que essa regra não é aplicada está na
fala da mariposa: “Pelmita-me oscular-lhe as alfácias”. Entretanto, trata-se de
uma situação de conquista amorosa, momento em que estamos acostumados a nos
enfeitar um pouco mais, inclusive no linguajar. Nesse ponto, o humor do texto
estaria na sofisticação – observe-se o preciosismo de “oscular” substituindo “beijar”
– misturada ao não-padrão “pelmita” e à confusão entre “faces” e “alfácias”.
Enfim, tal caráter sintético faz pensar
que a norma culta é redundante, prolixa, pois pluraliza todos os termos de um
sintagma. Além disso, a tão cultuada língua inglesa obedece a princípio
semelhante. Basta lembrar que só se pluraliza nesse idioma o substantivo: “the
yellow books”, “the red cars”. Portanto, a economia não é erro, mas um
princípio válido.
Quanto às formas verbais “isquentá”, “descansá”,
“beijá”, a única novidade que está ocorrendo é a transcrição em linguagem escrita
de algo que há tempos acontece na falada: verbos no infinitivo não têm o seu “r”
final pronunciado pela gigantesca maioria dos falantes brasileiros. O valor
dessa consoante é tão desprestigiado que talvez por isso ela seja rapidamente
eliminada quando usamos um pronome oblíquo em ênclise: “esquentá-lo”, “descansá-lo”,
“beijá-lo”.
Além disso, a troca entre “r” e “l”,
como ocorre em “vorta”, é um fenômeno bastante comum na história da língua
portuguesa. Camões já declarava, no soneto “Está o lascivo e doce passarinho”,
que “o Frecheiro cego [o] esperava”. Gil Vicente usava “Berzabu” em lugar de “Belzebu”.
E será coincidência que apareça aqui a forma “dispois”, tão comum na época
desses escritores?
Por fim, a simplicidade da fala popular
faz com que o “lh” seja trocado por uma semivogal “i”, tudo em nome da lei do
menor esforço, que comanda o falar humano: “muié”, “moiado”, “paia”. Tal
princípio também norteia a forma “lâmpida”. Por se tratar de uma proparoxítona,
forma estranha ao português, o “a” foi trocado pelo “i”, que exige menos
esforço para ser pronunciado, quase tornando o “p” uma consoante muda. Princípio
semelhante ocorre no inglês com boa parte das extensas palavras terminadas em “able”,
em que o “a” ganha som de “i”: “unthinkable”, “shrinkable”, “uncapable”.
Enfim, graças à letra de “As mariposa”,
percebemos que os diferentes níveis de linguagem são manifestações legítimas de
comunicação, pois carregam seu próprio conjunto de regras e mecanismos de
funcionamento, o que torna sua análise um exercício bastante prazeroso. E uma
forma de respeito à cidadania, pois implica a aceitação da diversidade humana.
Literatura da FUVEST-UNICAMP 2014:
resumos, análises e comparações.
Para comprar, clique aqui.
excelente texto, esclarecedor
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns por essa maravilhosa postagem! Estou trabalhando o livro "A língua de Eulália", de Marcos Bagno, nas minhas aulas de língua e gramática portuguesa na Licenciatura em Portugues na Argentina. Irei usar o texto para que os alunos analisem os fenomenos no livro descritos. (desculpem a falta de acentos, ausentes no meu teclado!)
ResponderExcluir