No post de 05 de agosto de 2012, utilizou-se a canção “Construção”, de Chico
Buarque, para se falar da especificidade do texto literário. Viu-se que, como toda
manifestação artística, sua forma expressa também conteúdo. Assim, por exemplo,
no trecho “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, a repetição do som
/tra/ sugere justamente o ruído provocado por algo interrompendo o fluxo.
Vejamos mais alguns exemplos em que ocorre esse feliz casamento.
Acima temos “O Papa é Pop”, de 1990, dos
Engenheiros do Hawaii. Sua mensagem é bastante significativa: “qualquer coisa
que se mova é um alvo”. Há aqui uma referência ao carismático papa João Paulo II,
que foi vítima de um atentado em 1981. O fato de ser popular (pop) possibilitou que o religioso sofresse
um ataque. Criticam-se então os efeitos nocivos da mídia que, na sua sanha,
acaba incessantemente destruindo seu objeto de trabalho. E essa ideia está
justamente no refrão da composição, com a repetição exaustiva do /p/ (“o papa é
pop [...] o pop não poupa ninguém”). Sugere-se aqui uma infantilização da
sociedade, já que se remete à fase em que a criança, encantada com sons, passa ludicamente
a brincar com eles. Sugere-se também, pela reiteração dos fonemas em um quase
trava-língua, o desgaste e até o esvaziamento que os meios de comunicação provocam
nos acontecimentos, de tanto martelá-los. E o mais incrível, e irônico, é que à
época em que essa música fez sucesso, era justamente esse o trecho mais cantado
e repetido, muitas vezes sem se entender o seu significado. Quem nasceu para
criticar o sistema acabou sendo vítima dele.
Um outro exemplo da união entre forma e
conteúdo é “Diamonds”, de Rihanna:
Nessa composição, é celebrada a felicidade
de se encontrar o amor. Tal feito parece fazer o eu-lírico alçar-se a um nível
superior, chamado de êxtase. Esta última palavra até faz lembrar o ecstasy, a
famosa pílula do amor. Talvez por isso a referência ao consumo de droga no
controverso clipe da música em questão. Ou a citação a “diamonds in the sky”,
imagem alucinógena que parece remontar ao psicodélico “Lucy in the Sky with
Diamonds” (1967), dos Beatles. O amor é, portanto, visto como uma droga, pois
nos coloca em um plano elevado. Mas o que interessa analisar nesse momento é
que esse içamento é sugerido pelo ditongo oral aberto /ai/, intensamente usado
na composição: “shine”, “bright”, “like”, “diamond", “find”, “light”, “I”,
“sky”, “alive”, “right”, “sight”, “life”, “inside”, “eyes”, “tonight”, “rise”, “moonshine”,
“die”. Trata-se de uma curiosa sinestesia, já que o brilho do diamante,
fenômeno visual, representa um fenômeno psicológico, a iluminação provocada
pelo amor, e é representado por um ditongo, fenômeno auditivo.
Outro exemplo muito válido é “Chuva,
Suor e Cerveja” (1977), de Caetano Veloso:
O andamento dessa composição é o do
frevo, ritmo característico do carnaval pernambucano. Bastante coerente com a
história que é narrada. Começa-se com um apelo para que o receptor da mensagem
não se perca em meio ao bulício. Trata-se de uma mensagem ambígua, pois também pode
parecer um apelo amoroso: “não se perca de mim”, “não desapareça”, “não saia do
meu lado”. Mas o importante é notar como a repetição de fricativas sugere
justamente o som dos pés se arrastando no chão molhado, fato mencionado no
texto: “E vamos embora ladeira abaixo / acho que a chuva
ajuda
a gente
a se ver / venha, veja, deixa, beija / seja
o que Deus quiser”. E o mais notável é que nesse clima dionisíaco de carnaval,
em que é tão fácil perder a cabeça (a razão, elemento oposto ao universo de
Dionísio), o embolamento dos verbos em “venha, veja, deixa, beija” sugere o que
ocorre nas duas últimas estrofes, com o clímax na fusão entre chuva, suor (da
dança) e cerveja, uma oposição bem humorada do mote “sangue, suor e lágrimas”, criado
por Churchill para responder como iria vencer a Alemanha de Hitler:
A gente se embala
se embora, se embola
Só para na porta da igreja
se embora, se embola
Só para na porta da igreja
A gente se
olha
Se beija, se molha
De chuva, suor e cerveja
Se beija, se molha
De chuva, suor e cerveja
Portanto, os três exemplos apresentados
neste post servem para mostrar a
especificidade do texto literário. Seu sentido não está apenas na ligação das
ideias que o compõem, mas também na maneira como é construído. Enfim, e nunca é
demais repetir, no feliz casamento entre forma e conteúdo.
O pop também esquece rápido: "Uma palavra escrita à lápis, eternidades da semana". E, como você mesmo disse, a própria banda foi vítima do pop, afinal, o pop não poupa ninguém, nem as bandas de rock... mas afinal o que é rock'n'roll? Os óculos do John ou o olhar do Paul?
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