Reiteradas vezes foi dito nO Magriço Cibernético que um texto é constituído
não apenas pelo amontoado de palavras e frases, mas pela ligação que elas
estabelecem entre si. No entanto, é também importante, para uma adequada
compreensão da mensagem a ser transmitida, prestar atenção ao contexto em que o
material analisado está inserido, do contrário, efeitos curiosos (algumas vezes
nada positivos) serão obtidos. A canção “Amor I Love You” (2000), de Marisa
Monte e Carlinhos Brown, é um bom exemplo disso.
A composição começa com um pedido de
algo que parece antiquado: a confissão do amor (“Deixa eu dizer que te amo /
Deixa eu pensar em você”). Quantas vezes esse tipo de demonstração não foi alvo
de no mínimo um risinho condescendente? É como se a pessoa dominada por tal
sentimento perdesse um pouco do respeito e seriedade (Ora, direis, conversar
com paredes? Certo perdeste o senso – para parodiar Bilac), talvez por investir
no que não tem muito futuro, por entregar-se (nas palavras de Camões) àquele “engano
da alma ledo e cego / que a Fortuna não deixa durar muito”. A culpa desse descrédito
é o desgaste que essa emoção sofreu, tantas vezes apresentada em músicas,
romances, filmes, novelas? Esse esgarçamento é tão nítido que pode ser notado,
por exemplo, na maneira como Marisa Monte canta o refrão: em vez “ai lâviu” (ou
algo próximo disso), como o faz quem quer se assemelhar aos falantes nativos, é
“ai loviú”, tão abrasileirado e popularizado. E não é à toa que essa frase é enunciada
duas dúzias de vezes. Ademais, tal deterioração se soma ao backing vocal, principalmente no refrão, que assume um tempero
próximo do brega.
Marisa Monte e Carlinhos Brown |
Todavia, o importante para esse post é notar um ponto interessante dessa
composição. Há nela a citação de um trecho de O Primo Basílio (1878), do romancista realista português Eça de
Queirós. Ei-lo:
"...
tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe
escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor
amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho
tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava
enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu
encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um
luxo radioso de sensações!"
O sujeito de “tinha suspirado” é Luísa,
protagonista do livro. Trata-se do momento em que ela recebe a primeira carta
de amor de seu primo, Basílio. Eça mostra maestria na manipulação da linguagem,
construindo trechos de extrema beleza, como aquele em que se faz menção ao “corpo
ressequido que se estira num banho tépido”, saborosa imagem do amor fazendo-nos
entrar “numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu
encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um
luxo radioso de sensações”. É gostoso ler e reler esses trechos, que parecem
reforçar a importância do apaixonado confessar seu estado de espírito, que
torna sua existência dourada. Assim, a ligação entre canção e citação é
encantadora.
Eça de Queirós, escritor famoso por sua ironia agressiva. |
Ou não. Quando se lembra que essa carta
foi escrita por um aventureiro, que engana a prima porque quer apenas
um relacionamento sem compromisso, pois, segundo ele, fazer sexo com ela é mais
higiênico do que com uma prostituta, a imagem iluminada da canção rui. E se
descobre algo muito importante – todo texto depende de seu contexto. Retirá-lo
de seu ambiente é cometer o crime de distorção. Assim, o trecho de Eça de
Queirós, fora do seu hábitat, revela elementos falsamente positivos. Não há
deslumbramento, mas ironia.
Caberia então perguntar se Carlinhos
Brown e Marisa Monte tinham noção de que a citação contradiz a canção? Ou eles
fizeram um interessante exercício dadaísta de manipulação de ready-made segundo o qual o objeto,
deslocado de sua origem, ganha nova significação? Ou os compositores falharam
ao fazerem uma associação ineficiente de elementos díspares? Enfim, ironia,
poeticidade ou inépcia? Mas há um agravante: qualquer que seja a resposta, o grande
público não percebeu nada, tal o sucesso que por muito tempo essa música obteve.
Incrıvel lau
ResponderExcluirNem eu ao menos sabia dessa citacao do eca , seven ser porque eu era menor....
Parabens otimo texto
Sacha
Ótimo!
ResponderExcluirBateu aquela saudade das tuas aulas! :)
Ótimo texto Laudumbledore rsrsrs...
ResponderExcluirSaudades das suas aulas!
Então, o texto foi usado pelos autores da música para expressar que não importa a verdade do sentimento mas sim o amor pelo sentimento de estar amando, o foco não é o outro, o foco é estar amando o sentimento de amar. Neste contexto "amor i love you" está pra cazuza com sua "mentiras sinceras me interessam" ...Marisa e Carlinhos apenas usaram um trecho incrivelmente perfeito da literatura brasileira para dizer que o sentimento de estar apaixonado se sobrepõe à real possibilidade desse amor! Amor, I love you!
ResponderExcluirTata Chiariotti, só uma ressalva, o romance de Eça de Queirós, o primo Basilio, é realista português e não brasileiro.
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