Sabemos que um
texto é feito dos elementos que o constituem e que, interligados, estabelecem o
seu sentido. Mas algumas vezes precisamos também ter noção de quem o produz
para dominarmos seu conteúdo. Em outras palavras, precisamos entender o seu
viés, ou seja, a tendência que o seu autor lhe dá. É o que vemos na imagem
acima, que circulou nas redes sociais há poucos dias.
À esquerda,
vemos a capa de uma edição de Veja,
revista que é acusada de direitista, conservadora e até defensora de posturas
antiecológicas, em nome de um neoliberalismo disfarçado de desenvolvimentismo. Esse
perfil, se real, faria com entendêssemos como bastante lógica a imagem que apresenta
ao seu leitor. Vemos um Hugo Chávez com uma expressão carrancuda, ameaçadora, diabólica.
Seu olhar erguido e desligado parece o de alguém que trama algo maquiavélico.
Reforça esse quadro o rosto ter um lado claro e outro oculto, dando a entender
que o que se mostra não é tudo, havendo algo escuso. Tudo isso é coerente com o
título: “Herança sombria”. Nada mais natural para um órgão defensor de
interesses conservadores. Segundo tal, o chavismo seria visto como atualização
do caudilhismo, do populismo, do lado mais nefasto do socialismo, dono de autocracia,
autoritarismo, atraso e posturas antidemocráticas.
À direita, vemos
a capa de uma edição de Carta Capital.
É válido lembrar que essa publicação constantemente é apontada como esquerdista
ou partidária das políticas do PT. É por isso que é também acusada de ter suas
páginas recheadas de propagandas do Governo Federal. Tal caráter tornaria
coerente a imagem que aqui exibe, a começar pela expressão altiva de Chávez. Seu
rosto já não é mais maligno, mas bem disposto (talvez bem humorado) e até nobre,
olhando para o céu como aqueles santos que miram o lugar a que estão destinados.
Além disso, o processo de edição a que foi submetida a imagem, que curiosamente
recebeu as cores da bandeira da Venezuela, aproxima-a da pop art, principalmente a de Andy Warhol (1928-1987). O ex-presidente,
portanto, está alçado a ícone popular. E a manchete, “A Morte de um líder”,
neutro, se não diz nada de positivo, pelo menos não diz nada de negativo.
Não interessa
saber qual das revistas está com a verdade. Mais importante é notar que o confronto
entre as duas capas, que circularam na mesma época e abordaram o mesmo assunto,
ensina duas coisas. A primeira é que a completa objetividade, principalmente a
jornalística, é um mito. A segunda é uma inferência da primeira: todo texto é
marcado pelo ponto de vista, pelo universo de valores de quem o produz, enfim,
pelo viés. Assim, poderia ser acrescentado ao título “Você é o que consome” a
mensagem “Você é o que produz”.
Ter consciência
dessa natureza ajuda a entender, por exemplo, a crítica que D. Ermelinda,
personagem de Til (1872), faz a
pessoas como Jão Fera, que não mostram gratidão aos favores que receberam dos
ricos. Basta lembrar que esse texto foi escrito por José de Alencar, um
conservador que não enxergava que estava configurado aí um sistema que
humilhava os homens livres pobres. Saber dessa característica dos textos ajuda
também a entender por que os trombadinhas de Capitães da Areia (1937) são tratados como heróis. É só ter em
mente que o autor desse texto, Jorge Amado, era, na época, membro do Partido
Comunista, agremiação política que possuía membros que defendiam que toda
propriedade seria um roubo – então, apropriar-se dos bens dos ricos não seria
um crime. Mas o exemplo mais interessante é o de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Para compreender a
volubilidade de seu narrador, precisamos levar em consideração que se trata de
um membro da elite brasileira, classe acostumada a praticar desmandos.
Entretanto, o mais interessante é saber que o protagonista assume posturas radicalmente
opostas às de Machado de Assis, autor do romance. Por aí já se consegue notar a
qualidade desse escritor, que se mostra um excelente manipulador do foco
narrativo: não foi necessário fazer crítica aberta aos grandes proprietários –
bastou apenas dar-lhes voz.
Enfim, todos
esses exemplos são provas suficientes da importância de se observar o viés de
um texto para que se tenha a sua perfeita compreensão.
excelente ponto de vista de alguém com uma óptica neutra e alto nível.
ResponderExcluirMuito obrigado! Mas este post está aberto para sua óptica e suas observações.
ExcluirSensacional!!!! Compartilharei com meus amigos(como ja fiz com várias outras publicações sua) ..A parcialidade desses textos deixa clara o objetivo de manipular o leitor.. Logo após a morte de chavez a revista ''the economist'' foi muito criticada pela parcialidade que teve.. foi praticamente uma comemoração com a morte do dono do chavismo.. a maioria dos comentários era algo parecido com ''Se tudo aquilo que o texto dizia fosse realmente verdade.. como era possível aquele homem ter admiração de tantos venezuelanos?''
ResponderExcluirA veja é criticada por vários outros post.. Depois dê uma olhada.. https://www.facebook.com/photo.php?fbid=351635898280922&set=a.295186833925829.64402.292678660843313&type=1&theater
..cabe a nós tentar ter algo parecido com a ''óptica laudemir'' ; como foi finalizado ''observar o viés de um texto para que se tenha a sua perfeita compreensão.''
Muito obrigado pelos elogios e mais ainda por compartilhar os textos dO Magriço com seus amigos.
ExcluirAh! Não se esquece. Todo texto tem uma dose de parcialidade. Se bem que a Veja supera em parcialidade, não acha?
Exatamente!! a veja não é criticada a toa.. sempre supera :)
ExcluirÓtima leitura. A caçada do viés perdido e a absorção do mito que a objetividade nunca será completa rondam minha cabeça agora.
ResponderExcluirDiria perfeito, mas a perfeição é o mito da teoria da Criação onde as coisas atingem um limite, como bom adepto da teoria Evolução digo: Excelente!
Abraços!
Muito obrigado pelos elogios!
ExcluirSe juntarmos o pensamento sofista que disse que "No limite existe apenas o que podemos provar", é o argumento que faz a verdade, com Maquiavel, que disse:"Poucos podem sentir a realidade por traz da aparencia" chegamos nessa relação, o jornalista escreve o que o público alvo quer ouvir. Afinal são eles quem pagam o seu salário. Infelizmente isso atrapalha quem busca a verdade "nua e crua", visando chegar à conclusões objetivas. Abraços Laudemir, saudade de suas aulas!
ResponderExcluirSaudade de sua cara séria na aula. Conte-me de suas novidades.
ExcluirE quanto ao jornalismo, fica-se com a impressão de que não se sabe onde está a verdade, não acha?
Excelente texto, vale visar que infelizmente as midias tanto televisiva e jornalista querem distorcer a realidade para mostrar os seus pontos de vista (nunca preocupados em mostrar a verdade "nua e crua").
ResponderExcluirNós criamos nossos proprios pensamentos,por isso, dessa maneira há tanta dualidade e divergencia nos pontos de vista.
Vale ressaltar que devemos procurar sempre nos informar, pensando que nem tudo o que nos dizem é verdadeiro.
O conhecimento é nós mesmos que criamos.
Vale a dica do texto do Professor Laudemir
Obrigado pela visita e pelo comentário.
ExcluirDe fato, é difícil o caminho do conhecimento. Em quem confiar?