O quadro acima, O
Casal Arnolfini, obra prima que o flamengo Jan van Eyck apresentou em 1434,
é um exemplo bastante salutar de como um texto só consegue funcionar a partir
da ligação estabelecida entre seus diferentes elementos. Seguindo então esse
raciocínio, o que poderia então ser lido nele?
Como o título indica, trata-se de um retrato de uma
união amorosa, o que se infere pelas mãos unidas. Entretanto, outros gestos são
bastante significativos. A mão que ela repousa sobre a dele indica que o
casamento não é uma prisão, mas uma entrega em que predominam serenidade e
confiança, reforçadas pela expressão facial das duas figuras. Além disso, a
cabeça levemente inclinada da mulher revela submissão isenta de humilhação.
Outro elemento gestual valioso é a maneira como a figura feminina avoluma o vestido
para sugerir gravidez. Destaca-se aqui uma das funções primordiais do
matrimônio: a produção de herdeiros.
No entanto, a observação desses elementos que saltam
à vista, e que, portanto, são superficiais, diz pouco sobre a grandiosidade
dessa obra. Uma leitura só se faz completa quando outros ingredientes, menos
rasos, são ativados. E muitos deles têm a ver com o contexto em que o material
analisado está inserido.
Uma primeira frente de análise, e predileta para
muitos, é a historiográfica. Quem são os retratados? Como era a sociedade
deles? Sabe-se que o casal é Giovanni de Arrigo Arnolfini e Giovanna Cenami,
jovens representantes de uma rica classe de mercadores italianos. O casamento
constitui uma união de interesses econômicos bastante proveitosa, mas que teve
como resultado uma derrocada social: ela não conseguiu engravidar e, portanto,
garantir um herdeiro; ele foi processado por uma amante que se sentiu
prejudicada ao ser preterida.
No entanto, esses fatos enriquecem a obra apenas de
curiosidades que resvalam o plano do mexerico, não dando conta da grandiosidade
estética do quadro. Torna-se necessário, portanto, refinar a abordagem,
deixando de lado o meramente factual e buscando o analítico, associando-o
principalmente ao contexto cultural. No presente caso, esse é o caminho mais
correto, pois a pintura flamenga do século XV consagrou-se por fazer com que
objetos do cotidiano aparecessem não como mero detalhismo, mas como simbologia
com a função de transmitir ensinamentos.
Por se tratar de um quadro de casamento, a figura do
cachorro entre o senhor e a senhor Arnolfini é bastante significativa. Trata-se
de um animal que tradicionalmente é associado a companheirismo e fidelidade,
qualidades que devem nortear qualquer matrimônio. Essa ideia também está
presente na única vela do lustre, que conota o compromisso de envolvimento assumido
para uma só pessoa.
Esse engrandecimento do casamento atinge o nível do
sagrado. Prova disso é que o casal está descalço, indicando que o solo em que
estão pisando, o quarto (note que ao fundo se vê uma cama com roupas vermelhas)
está sacramentado. Interessante é notar que ele deixou seus calçados de madeira
no canto inferior esquerdo do quadro, quase saindo – sinal de que o homem está
voltado para o mundo externo; enquanto ela deixou seus calçados vermelhos ao
fundo, bem para dentro do cômodo – sinal de que a mulher está voltada para o
mundo interno, doméstico.
Entre o espelho e lustre encontra-se em latim, em
letras góticas (tipo oficial das documentações oficiais de então), a frase “Jan
van Eyck esteve aqui em 1434”. Estudiosos veem nessa inscrição uma preocupação
em mostrar que o quadro poderia servir como documento de casamento, servindo o
próprio pintor como testemunha (não é à toa que ele aparece refletido – assim como
o casal – no espelho). Reforça também esse caráter sagrado a única vela do
lustre, simbolizando agora a presença de Deus, o pai todo poderoso como o único
a ser venerado. E sobre a cabeceira da cama está a imagem de uma santa, que não
se sabe ao certo se é Santa Margarida ou Santa Marta (a vassoura ao lado da
entidade depõe a favor desta última). Ambas são padroeiras das donas de casa e
do bom parto.
Já que se mencionou a preocupação com o ato de parir,
um dos objetivos do matrimônio, é interessante notar que outras simbologias
entram em ação reforçando esse sentido no quadro. Mais uma vez, cita-se a única
vela do lustre, que agora ganha novo significado: o da fertilidade. O mesmo
ocorre com os pés do senhor Arnolfini, que revelariam uma superstição da época:
entrar descalço no quarto de núpcias garantiria fertilidade. O vermelho da
roupa de cama é outro elemento que carrega a mesma simbologia.
Não se deve esquecer também que para muitos cristãos
o casamento está ligado à sexualidade, fator que provocou a expulsão do Paraíso.
Há referência a isso na laranja à janela, que não só está ligada à origem
mediterrânea do casal, como também é associada ao fruto proibido. Essa união,
para não incorrer em impureza, precisa submeter-se aos ditames do cristianismo.
Daí o espelho com dez das quatorze estações da cruz, lembrando que Cristo
sacrificou-se por nós para nos expurgar desse pecado original. E essa
purificação também está simbolizada no rosário de cristal ao lado do espelho,
típico presente que à época um noivo dava para sua noiva.
Ainda assim, o quadro que enfoca a união de dois
membros representantes de famílias de mercadores riquíssimas não ignora as
questões econômicas. Os dois jovens fazem questão de mostrar que não são
estouvados, mas precavidos. Têm pé no chão, conotativa e denotativamente. Eles
mostram que têm consciência de que uma união só se pode efetivar quando se tem
equilíbrio financeiro. É o que as vestes que usam denotam, pois são refinadas
para o padrão da época. É o que apontam as laranjas à janela, frutas até então
caríssimas. É o que mostra o luxuosíssimo tapete de Anatólia ao pé da cama. Eles
têm posses, por isso podem casar-se.
Todos esses elementos arrolados indicam que uma leitura
eficiente só é possível quando se presta atenção à articulação de elementos de
um texto. Essa ligação tanto se dá no campo interno de uma obra quanto no
externo, este último ligado ao contexto. E tal exercício só se faz competente
quando se tem um bom repertório cultural. O que equivale a dizer que quanto
mais se lê, mais conteúdo se adquire e melhor se lê.
To fazendo doce!
ResponderExcluirMuito interessante,professor !
ResponderExcluirEu estou tentando fazer uma análise comparativa entre o poema do Manuel Bandeira "Eu vi uma rosa" com o do Drummond "O anúncio da Rosa''. Vc já fez algo parecido? Ajude-me, bjs