A Cidade e as Serras (1901), de Eça de Queirós, apesar de não ser um livro extremamente empolgante, é rico em temas. No post da semana passada, por exemplo, falou-se da crítica que faz ao estilo de vida moderno, que se mostra desumano por nos massacrar num fluxo de atividades alienantes. Neste post, vai-se discutir outro ponto importante: a referência ao mito do sebastianismo.
A origem desse termo está na figura de D. Sebastião (1554-1578), décimo sexto rei de Portugal e que desapareceu nas areias do Marrocos, na famosa batalha de Alcácer Quibir. A nação portuguesa deparou-se então com um imenso problema: como o monarca não tinha esposa e filhos, não havia deixado herdeiros; além disso, ninguém vira o corpo dele. Um imbróglio estava formado. Por um lado, o rei Felipe da Espanha, parente mais próximo do desaparecido, assumiu o trono, pondo fim ao gigantismo do império português, que agora fora anexado ao domínio hispânico. Por outro, fica entre o povo a esperança do retorno do rei, que traria de volta a grandiosidade da nação. E até hoje o lusitano, principalmente o habitante das pequenas cidades de Portugal, alimenta esse anseio da volta do que passou a ser chamado de o Desejado, o Encoberto e até mesmo São Sebastião. A consequência desse processo é a paralisia em que se viu mergulhada aquela nação, um dos motivos de sua decadência.
Entretanto, na forma como a questão é colocada, tudo fica como se fosse um tema ligado à conjuntura ibérica. O que nós, brasileiros, temos a ver com isso? E como A Cidade e as Serras se torna útil em nosso contexto cultural? Uma pista para se chegar à resposta dessas indagações está em uma expressão usada no parágrafo anterior: “o retorno do rei”. Faz lembrar uma das obras da trilogia O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, mais especificamente o terceiro volume, O Retorno do Rei (1955). Nota-se, portanto, que se está lidando com elementos que ultrapassam o contexto português.
A ideia do volta do governante, recuperando uma época gloriosa, já está, por exemplo, no mito clássico da Idade do Ouro, que relata um tempo maravilhoso em que o homem convivia com o deus Saturno. Este, ao partir, abandonou o seu conviva à imperfeição crescente, fazendo-o decair para a Idade de Prata, depois para a de Bronze e sem seguida para a de Cobre e Ferro. Cria-se, pois, a expectativa pelo restabelecimento dessa época fabulosa.
Esse desejo fará eco em um dos mais importantes mitos do cristianismo, que é o retorno de Cristo. Essa crença se mistura à profecia bíblica de Daniel, a qual fala de um Quinto Império, que lutaria pela implantação do Reino de Deus. Na cabeça do português, esse império, que sucederia o babilônico, o egípcio, o grego e o romano, só poderia ser o lusitano, que teria na figura de seu rei o defensor da implantação do governo santo. Essa história vai-se misturar a outro mito cristão, dessa vez medieval, que é o do Milênio, uma ordem de mil anos que, dependendo da versão, prepararia caminho para o Reino de Deus ou seria o próprio império divino.
Nesse caldo há de se colocar mais um importantíssimo ingrediente, presente no vídeo acima, final de Excalibur (1981). Nele, o lendário rei Arthur pede a Percival, o mais puro dos cavaleiros da Távola Redonda, que jogue a espada, a qual dá nome ao filme, em um lago, pois um dia um rei surgiria e ela seria levantada novamente (“one day a king will come and the sword will rise again”). A vontade se cumpre em uma cena cheia de belas simbologias muito bem manipuladas pelo diretor John Boorman.
Assim, quando Jacinto, protagonista de A Cidade e as Serras, surge do estrangeiro e melhora a situação do povo de suas terras, ele passa a ser chamado de Dom Sebastião, tornando explícita a relação com o mito aqui analisado. Curiosamente é também nomeado Pai dos Pobres, expressão fortemente associada a outra figura lendária, desta vez da História do Brasil: Getúlio Vargas. Mas não foi apenas esse presidente que foi tocado por esse mito. Ele já se mostrou presente na revolta de Canudos, por exemplo. Deve-se lembrar que os revoltosos, segundo relatos, criam que D. Sebastião iria surgir no sertão da Bahia para lutar contra a maligna “república ateia”.
Enfim, por meio dessas observações nota-se que esse romance de Eça de Queirós lida com temas bastante atávicos da condição humana, da qual nós, brasileiros, não estamos isentos. Somos seres da esperança, que é o que nos mantém em pé principalmente nos piores momentos. Quem viu, por exemplo, o recém-lançado Prometheus (2012) sabe muito bem do que se está falando. Toca, pois, no que o Velho do Restelo, de Os Lusíadas (1572), de Camões, chamava de nossa “mísera sorte” e “estranha condição”.
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