A Cidade e as Serras (1901), de Eça de Queirós, é uma obra que não deveria estar na lista de livros da FUVEST-UNICAMP 2013. A começar, é um romance incompatível com a capacidade do estudante que acabou de terminar o Ensino Médio. Seria muito mais válido, se a intenção é avaliar a compreensão do estilo do grande escritor português, que se colocasse O Primo Basílio (1878), livro infinitamente melhor e até mais empolgante. Até poderia ser admitido O Crime do Padre Amaro (1875).
Outro problema do referido romance é apresentar-se como um ótimo tema que foi esticado para além da conta. Como se sabe, ele é o desenvolvimento do conto “Civilização”, do mesmo autor. A diferença é que na pequena narrativa Jacinto, o protagonista, era morador de Lisboa, ao contrário do texto aqui discutido, em que esse indivíduo reside em Paris.
Acrescenta-se a isso o fato de haver uma irregularidade de estilo. A primeira metade passou pelo crivo da revisão do autor, que ele próprio considerava uma fase importantíssima na confecção de um texto. Infelizmente Eça faleceu antes que se entregasse à tarefa de burilamento do estilo da segunda metade, que ficou a cargo de um amigo, Ramalho Ortigão, que não tinha a mesma competência queirosiana. Isso impediu o romance de talvez se tornar uma das melhores obras da literatura em língua portuguesa.
De fato, o livro se vale pela primeira metade, que tem momentos magistrais, como o incomparável capítulo IV, em que ocorre o jantar no qual será degustado o tão esperado peixe da Dalmácia. Nesse episódio o escritor reúne personagens que representam os diferentes setores da alta sociedade parisiense, sobre os quais derrama sua verve. E nesse ponto, deixando de lado os anacronismos, A Cidade e as Serras acaba se tornando bastante atual. É um ponto que merece melhor explicação.
Jacinto é o que hoje seria considerado uma mistura de tecnófilo com nerd ou geek. Sua equação para a felicidade – suma potência + suma ciência = suma felicidade – reforça essas qualificações, pois o mostra como um apaixonado pelo universo da tecnologia e do conhecimento. E aqui essa narrativa do final do século XIX parece profetizar valores imperantes nesse começo do século XXI.
Recentemente se atingiu o feito de a maior parte da população mundial viver nas cidades, o que indica que os grandes centros urbanos e seu estilo de vida se firmaram como o ideal para o bem-estar humano. Entretanto, como vaticinava o capítulo VI de A Cidade e as Serras, isso tudo pode passar apenas de uma ilusão, pois esse ambiente, criação do homem, paradoxalmente não se mostra humano, já que, como declara Zé Fernandes ao seu desencantado amigo Jacinto, acaba oprimindo o seu morador.
Esse sufocamento pode ser vislumbrado por meio do vídeo acima, trecho de Koyaanisqatsi (1982), do diretor Godfrey Reggio. Nele conseguimos ver o perigo que é entregar a um filósofo a confecção de um filme. Com uma trama nada convencional, se é que ela existe (o mesmo se pode afirmar sobre A Cidade e as Serras), sentimos após a sequência de cenas que representam o cotidiano urbano uma vertigem que é um soco em nosso estômago existencial. Notamos o contínuo fluxo de pessoas e coisas (ressaltado pela música minimalista de Philip Glass), o que consiste no recurso cinematográfico da comparação. A partir dos 5 minutos de exibição a intenção do autor se torna mais evidente. É quando vemos os cidadãos se espremendo para entrar em filas de escadas rolantes e logo após aparece a linha de produção de salsichas. A semelhança que se estabelece é de tirar o fôlego, principalmente porque revela que estamos vivendo uma rotina de mecanização e automatização que atinge até mesmo os momentos de lazer. E é importante notar no vídeo como tal é passada de pai para filho. Consequência: estamos perdendo a vida. Ou como já dizia Drummond em Sentimento do Mundo (outra obra da lista de livros da FUVEST-UNICAMP 2013), especificamente no poema “Os Ombros Suportam o Mundo”: “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. / A vida apenas, sem mistificação.”
Enfim, um dos méritos de A Cidade e as Serras (assim como de Koyaanisqatsi) está em mostrar que o sonho positivista de que a ciência e a tecnologia trarão a felicidade corre um sério risco de fracassar. Não se está falando apenas das implicações ambientais, que por si sós já são bastante preocupantes. Há também as existenciais. Igualmente prementes.
Esperando Godot...
ResponderExcluirEsperando a Razão...
ExcluirQuando fui à biblioteca pegar esse livro emprestado, o rapaz que me atendeu já foi comentando "Esse concerteza é o livro mais chato da lista da FUVEST, preferia mil vezes O Primo Basílio, se eu fosse você deixaria para ler este por último." Confesso que fiquei um tanto desanimado. Quando abri o livro nas primeiras páginas estava o aviso, informando que o Eçá havia morrido antes de terminar o livro e que a partir da página 126 (daquela edição), o livro foi terminado por amigos. Lendo o livro, não percebi diferença literária quanto a parte escrita originalmente e a terminada por outros, mas muitos dizem perceber sutilmente. Acredito que quem tem mais conhecimento sobre literatura deve perceber sim. A minha pergunta é: Será que a FUVEST pode cobrar o que não foi escrito pelo Eça?
ResponderExcluirCaro Edgar, de uma forma ou de outra o livro inteirinho foi escrito por Eça de Queirós. A diferença é que a primeira metade também foi revisada por ele. A segunda metade é que não passou pela revisão.
ExcluirHum, que falta de atenção minha! Verdade acabei de rever é realmente isso que fala na advertência. Olha eu disseminando informação errada. Obrigado pela resposta Prof. Boa semana!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirProf., pode-se dizer que o texto é uma crítica ao livro apresentado:
ResponderExcluirGênero crítica?
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,o-cavaleiro-das-palavras-estranhas-,886930,0.htm
Muito obrigada
Cara Patrícia, eu não entendi a sua pergunta. Poderia reformulá-la, por favor?
ExcluirAssim, como seria classificado o gênero do texto, do link do estadão, por exemplo, uma crítica, um artigo de opinião, painel do leitor, narrativa. Gostaria de saber qual gênero predomina no texto, acredito que seja uma resenha crítica, fiquei um pouco em dúvida. Sei que não tem muito a ver com assunto do post, mas é uma dúvida.
ResponderExcluirParabéns pelo texto, adorei.
Lau, eu particularmente gostei muito do livro e concordo com seu ponto de vista, em relação a atualidade da obra. No final do texto, vc diz: "o sonho positivista de que a ciência e a tecnologia trarão a felicidade corre um sério risco de fracassar". Já venho ouvindo isso em várias vertentes de pensamento. Não sou místico, mas essa ideia é a essência para a era de aquarius kkkkkkk. Verdade, já me disseram isso em um bar e lembrei agora no seu texto rsrs. Já procuramos tantas respostas na ciência, e conseguimos muitas, mas outras não foram supridas. Legal, acho devemos partir mais para o lado filosófico e humanista. Grande Abraço Lau!
ResponderExcluirobs: adorei o filme!!!
Nossa! Será q me tornei místico? rs...
ExcluirSaudade de suas participações. Ainda bem que você voltou.
Parabéns pelo blog.Gostaria se possível de um e-mail seu.Na realidade gostaria de saber se vc da aula particular ou conhece alguém que faça isso.
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ExcluirA segunda metade de A Cidade e as Serras sempre me lembra tanto o conto Minha Gente, de Sagarana...
ResponderExcluirNossa! Sabe que nunca passou em minha mente esse tipo de relação! Faz sentido sim. Há uma certa semelhança. Mas em "Minha Gente" não há o mesmo caráter programático da segunda parte de A Cidade e as Serras, não acha?
ExcluirAh, sim. Concordo plenamente. Comparo mais pelo clima aprazível e bucólico que os dois fragmentos de livro me transmitem. Mas acho que as propostas são bem diferentes. Se me permite uma análise leiga, eu diria que Eça tem um compromisso mais "ideológico" com as Serras, uma verdadeira tentativa de legitimá-las, já Guimarães me parece brincar, parodiar, misturar sentimentos e ironias em uma história de amor com final feliz. Ambos magistrais, sem dúvida. :-)
ExcluirPode ser. Eu mesmo não consigo ver valor em "Minha Gente", este é o fato. Lembro que Guimarães o compôs em meio a uma gripe muito forte. Tem cara de gripe mesmo, de coisa de acamado. É de uma pasmaceira...
ExcluirEu sabia que você seria cruel ao se referir ao "Minha Gente". Mas, apesar de ser uma história calma e sem grandes acontecimentos ou ousadias roseanas, acredito que seja um conto bem posicionado no livro e de extrema importância para sua lógica. De alguma forma, sinto como se ele nos aliviasse e nos preparasse na cadeira confortável para a mão pesadamente criativa que está por vir, para a mão que vai nos levar aos limites da razão e de questões existenciais com "São Marcos", "Conversa de Bois" e "A Hora e Vez de Augusto Matraga". É como o afago antes da imensa bofetada, o beijo antes do escarro. Enfim, sou um grande defensor de "Minha Gente" e, mesmo em face de mestres como você, não hei de sucumbir.
ExcluirEstá bem, você conseguiu dar algum valor a "Minha Gente". Ainda assim, os três que você citou eu releria com todo prazer e sem dificuldades. Já "Minha Gente"...
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