Há algum tempo circulou pelo Facebook uma imagem intitulada “Era uma vez uma criança órfã” que exibia semelhanças entre Rei Leão, Harry Potter, Star Wars, Batman, Cinderela, Senhor dos Anéis e Mowgli (Quem quiser vê-la, basta acessar www.iplay.com.br/Imagens/Divertidas/06e7/Era_Uma_Vez_Uma_Crianca_Orfa). Pode ser incluído nessa listagem outro grande sucesso: Matrix. Para quem não se lembra ou não viu, um resumo das relações: um órfão faz dois amigos e com eles enfrentam alguém que quer dominar o mundo em que vivem. O herói utiliza então um instrumento para derrotar o vilão e estabelecer a paz.
Tal imagem circulou pelas redes sociais e foi entendida como um expediente para rebaixar essas obras cinematográficas, mostrando-as como vítimas do pecado da falta de criatividade, crítica que já havia acontecido entre Avatar e Pocahontas (os dois filmes narram a paixão que o membro de um povo invasor acaba tendo pela integrante do povo invadido). Bobagem.
Há quem diga que nada mais foi criado de narrativa depois da Idade Média. Assim, seria natural que tudo o que tenha sido feito seja reformulação de histórias anteriores. Há quem diga também, principalmente os estruturalistas do séquito de Vladimir Propp, que toda fábula segue elementos básicos, os chamados motivos. O mais famoso deles é o esforço pela posse de um objeto mágico que permite mudanças na vida do herói – o que pode ser visto até em videogames, já que em muitos deles a passagem de fase só se dá com a condição de o jogador encontrar uma chave, uma carta, uma senha ou o que quer que seja. Entretanto, a abordagem que será feita aqui seguirá outro caminho.
A necessidade de contar histórias – e de acompanhá-las – está ligada a uma manifestação sagrada que remonta ao tempo da criação dos mitos – narrativas que surgiram para explicar ao homem os mistérios da vida que tanto o fascinavam. Assim, quando hoje se vai ao cinema ou se compra um livro, de uma forma ou de outra se está recuperando esse encantamento.
Dentro desse raciocínio, deve-se lembrar que o homem, em qualquer parte do mundo, tem uma base comum e por isso tem as mesmas experiências. Assim, seja no Brasil, no Antigo Egito, na Mesopotâmia, na Grécia, na China, nas savanas africanas ou nas áridas áreas dos aborígenes australianos, sempre se enfrentou a amarga experiência do abandono do útero protetor para a entrada em um mundo agressivo. Assim, todos esses povos acabaram criando histórias que simbolizavam essa passagem como o mito do paraíso perdido. Ou então, viram o sol se pôr, as trevas chegarem, mas serem expulsas pelo retorno do astro-rei. Isso inspirou alguns a acreditarem na vida após a morte, outros a crerem no eterno embate entre bem e mal, encarnado nas figuras das luzes e da escuridão.
Assim, os filmes apresentados no site do IPlay são apenas maneiras diferentes de se trabalhar com uma base comum, que é o homem. Todos eles mostram então uma das mais emocionantes e importantes aventuras de nossa existência: a jornada do herói, também conhecida como monomito. Trata-se de um tema bastante valioso, que simboliza a essência do ser humano: abandonar o conforto da situação a que nos acomodamos (isso é visto até mesmo em Harry Potter e Cinderela – guardadas as devidas proporções) para enfrentar um mundo cheio de dificuldades. Enfim, crescer, virar gente. O resultado é sempre a paz e a felicidade, que pode ser encontrada sabiamente na simples e grandiosa experiência de se estar vivo. A verdadeira e grande aventura humana.
Detalhe: também circulou no Facebook uma variante muito interessante da imagem do IPlay, desta vez pertencente ao perfil do Morre que Passa:
Nota-se nesse segundo exemplo a percepção bastante válida da figura do mentor de barba, grande símbolo do saber acumulado pela experiência de vida, presente, por exemplo, na descrição que Camões faz do Velho do Restelo em Os Lusíadas. Também é graciosa a referência ao perdão como forma de redenção final, uma experiência que toca fundo no receptor da mensagem, pois indica que todos nós, por maiores que sejam nossos erros, ainda temos uma essência boa que nos salva.
É bacana ler um texto citando o Propp mas abordando o lado da necessidade do ser humano de contar histórias, e não somente citando suas funções, que no curso de Letras às vezes são chatas de ser estudadas por não estabelecer essa relação que você fez. Muito bom o texto.
ResponderExcluirDou-te razão, Dorfão. Sofri muito na faculdade com esses estruturalistas, principalmente porque meus professores os tornaram áridos com a pouca relação com as "necessidades humanas". Esqueciam a relação entre forma e conteúdo. Mas que bom que você gostou do texto!
ExcluirO Interessante não é a história básica e simplificada, mas sim suas nuances e a jornada do herói. Somos entretidos muito mais pelo caminho a ser trilhado do que a conclusão da história porque no fim sabemos que o herói ganha, o bem vence, o Frodo destrói o anel, o Neo cria a paz, e Sherlock desvenda o caso.
ResponderExcluirMuito bem observado, Number_5. A estrutura básica não nos interessa mesmo. Sempre sabemos que o final será feliz. Queremos é, como você apontou, sentir o caminho, não a chegada.
ResponderExcluirPor isso que eu defendo a Lady Gaga quando falam que ela copia a Madonna na atitude de palco; falo do alto da minha ausencia de embasamento cientifico,mas com furor sentimental, que ela é uma releitura contemporanea do que a Madonna foi: polêmica,ousada,taxada de infinitas perolas.
ResponderExcluirMas retirando minha veia pop de cena,uma vez assistindo Café filosofico sobre o Mito de Vishnu,que na busca de sua amada sequestrada tem similar estrutura dita no seu texto,descobre novos objetivos "colecionáveis" para a estrutura de um bom homem,citado no mito : "equilibrio,desapego e conhecimento de si", e queessas experiencias são personagens relevantes da trama. Os mitos servem para ajudar nos nessa busca do homem bom perdido na natureza que se repete. Uma releitura necessaria.
Ps:tem um filme chamado John Carter entre dois mundos,que é um roteiro antigo que foi deixado de lado por decadas, e a cada decada que passava um trailer tomava as idéias desse classico que teve sua estreia em 2011,mas que a critica desavisada disse ser "mais do mesmo",vale a pena assisti-lo.
Adoro seus textos Lau, e quando você pergunta algo que você não esta encontrando para usar como referencia,fico aguardando quais serão suas proximas gostosas palavras. :-)
Gostei de suas observações. Vou ver se encontro esse Café Filosófico. E obrigado pelo elogio carinhoso!
ExcluirSó assisti a esses filmes pelos efeitos visuais e jogadas de cenas que são capazes de conduzir emoções. A experiência é parecida com uma reprise de um jogo de futebol, o resultado e dados da partida já são conhecidos, mas é uma forma válida de lazer - para aqueles que apreciam o esporte.
ResponderExcluirDistintivamente do que acontece nesses enlatados hollywoodianos, fórmulas como as usadas nos filmes do Staley Kubrick, Quentin Tarantino, Francis Ford Coppola e tantos outros gênios do cinema é que são capazes de tocar no âmago do ser e contar um pouco melhor sobre sua própria essência, seja ela a violência, superação, evolução, amizade ou mesmo da questão ínfima da vida, como o retrato do magnânimo "Tree of Life". Através de inovações criativas e até mesmo tecnológicas, o pensamento crítico da natureza humana toma forma nas telas pelas mãos desses maestros cinematográficos, comove o espectador e se torna eterno na história.
Acredito sim que essas historinhas repetitivas estão saturadas com a mesma estrutura previsível e não fazem pensar nem refletir profundamente. Apenas são válidas, quando bem contadas, para distrair e entreter o público.
Caro Felipe, é importante despir-se de preconceitos (eu muitas vezes inadvertidamente os visto) e ver que a essência humana tanto está intelectualmente muito bem captada em filmes como os de Kubrick (sou fã dele) como instintivamente nos blockbusters, vítimas da sanha da indústria cultural (não sei se Kubrick e semelhantes também não o foi). Todos são manifestações culturais que, portanto, acabam expressando visões do ser humano. Falarei mais sobre isso no próximo blog.
ExcluirPois é, querido professor Laudemir, até se pode dizer que nada foi realmente inventivo (e/ou criativo) depois da idade média, mas tudo isso aí são histórias muito famosas, os populares blockbustters, campeões de bilheteria mundial. Posso até estar falando uma bobagem, mas, geralmente, filmes assim fazem o sucesso que fazem por causa da proposta de ser de fácil assimilação. Eu gosto de Harry Potter, mas nem tanto pelos pontos de narrativa ou enredo, o que não deixa de ser legal, mas o interessante mesmo é a fascinação que coisas subjetivas trazem, como: poções, esportes diferentes. No caso de O Senhor dos Anéis, o que mais me encanta é a inteligencia do Tolkien. é impressionante ele ter conseguido criar uma outra forma de sociedade, um outro tipo de lugar, um outro tipo de espécie, e por aí vai.
ResponderExcluirEnfim... meu argumento principal até mesmo sem precisar citar esses exemplos mais modernos é que tanto a literatura mundial está com qualidade incrível. Do século 19 para cá há obras muito consistentes e fantásticas sem apelar para o salvador da pátria. Até porque podemos não somente ver isso aí como histórias criadas a partir dos embriões da idade média como também histórias com teor bíblico onde sempre há um salvador, alguém destinado ao sacrifício para o bem dos outros.
Posso ter falado muita bobagem, mas é a forma mais consciente com que eu vejo tudo isso.
Abraço!
Caro Fernando, quando citei a Idade Média é porque ela foi o último ponto de referência. Mas muito de nossa cultura tem fontes na Bíblia e na Cultura Greco-Romana, mais antigas, obviamente, que o suco medieval. E quando citei a jornada do herói, citei apenas um mito entre tantos. Há vários motivos literários que podem ser abordados também.
ExcluirDesculpa se pareci rude, não foi minha intenção. Não me senti ofendido com o post. Entendi a proposta do argumento. Só quis dar a minha visão também.
ExcluirAbraço.
Meu querido, eu não senti rudeza em seus comentários. Longe disso.
ExcluirO herói:Pedrinho
ResponderExcluirCriado com: Dona Benta (só nas férias). E tia Nastácia!
A "tchurminha": Narizinho e Emília
O sábio barbudo (ou barbichudo): Visconde de Sabugosa
O vilão: a Cuca
A terra mágica: o Sítio do Picapau Amarelo
O herói derrota o vilão com: Bodoque
Personagem a ser perdoado: o Rabicó, que vive roubando comida e quase ia virando feijoada na cozinha da tia Nastácia.
Gostei muito da sua observação, JM! Mas cuidado pra não cair no erro de alguns estruturalistas ao só enxergar o esqueleto. A delícia está em perceber que, apesar da mesma estrutura, existem diferenças e essas que nos fazem gostar de acompanhar histórias.
ExcluirAcredito que o que podemos pensar é se essas histórias, pelo fato de possuírem uma estrutura limitada e repetida, possuem algum valor artístico. A questão estruturalista pode até ser pensada, mas, no meu ponto de vista, não deve ser a única a ser considerada, pois o artista não completa simplesmente um conjunto de pré-definições como um matemático completa uma equação, existe a individualidade de cada criador.
ResponderExcluirSão obras distintas, cada uma com seu valor, umas melhores trabalhadas, como Star Wars e Senhor dos Anéis, e outras um pouco menos. A estrutura é a "mesma", mas uma faz referências completamente diferentes. Se pegarmos as novelas da Glória Perez percebemos recorrências como a inserção de outras culturas e temas polêmicos, no entanto ela trabalha isso em “O Clone” através de um casal (Lucas e Jade), cada um de uma cultura diferente que em um determinado momento vai se chocar; combate entre religião e ciência está presente representado pelos personagens Tio Ali e Albieri assim como o tema do uso de drogas. Em “Caminho das Índias” existe a cultura “exterior” mas o choque dessa vez será causado por um triângulo amoroso (Bahuan, Maya e Raj) da mesma cultura e as contradições internas presentes nessa própria cultura para compararmos com a nossa . A busca do sonho americano pela personagem Sol, em “América”, é o meio que a autora vai utilizar para mostrar o choque entre as culturas.
Nas novelas de Manoel Carlos segue o mesmo esquema: mostrar o cotidiano da elite carioca e mostrando esse cotidiano ele acaba criticando os valores e as relações dessa classe. Há até a repetição do nome da personagem principal: Helena. No entanto, cada novela, cada obra vai possuir uma individualidade.
Os temas são limitados: amor, ódio, traição, dúvida, decadência, etc; o modo de explorá-los são vários mas limitados também: eu posso falar de amor em redondilhas, decassílabos, versos livres ou através de um soneto, mas vou acabar sempre seguindo uma estrutura, o que não desmerece minha obra, assim como são considerados gênios aqueles que quebram com regras e passam a ser modelos como Machado de Assis, Pirandello, Dostoievski ou James Joyce.
Nossa foi mal pelo tamanho do comentário hehe, o pensamento saiu voando, acho que vou aproveitar pra colocar no meu blog, se me permitir usar a deixa.
Abrass Laudemir
Nossa! Adorei seu comentário! E fez uma abordagem interessane e séria até mesmo de novelas! Não que eu seja noveleiro...
ExcluirFugindo um pouco do assunto do post, analisando um pouco a obra Harry Potter eu percebi uma posição feminista da autora, onde os bruxos homens são brincalhões desinteressados e desajeitados, e as bruxas são inteligentes, habilidosas e dedicadas.Destacando assim as personagens como Professora Minerva, Gina weasley(na minha opinião a mais foda de todas!!),Hermione Granger,Belatriz Lestrange e do lado oposto o time dos homens(aff) Harry Potter,Irmãos weasley,Neville até mesmo o todo "poderoso" Dumbledore que só tem nome e fama que não é justificada no filme pelo menos.Assistindo o ultimo filme da série me fez questionar até o por que o Harry é o protagonista da saga.Bom,essa foi a minha impressão,a opinião de uma pessoa que somente assistiu aos filmes.Não sei se o Mestre Lau ja parou pra pensar nisso, eu sei que fugiu muito do assunto mas eu precisava expressar meu descontentamento pois assisti todos os meus personagens preferidos morrerem ontem a noite revendo os filmes da série(#CHATEADO).
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