O post passado chegou a provocar em alguns usuários uma grita. A alegação era a de que O Magriço Cibernético não devia se preocupar com blockbusters e ainda cometer o sacrilégio de defender a ideia de que essas vítimas da sanha capitalista da indústria cultural apresentam conteúdo. Em primeiro lugar, é importante lembrar que aquele texto não se preocupou em debater a qualidade desse tipo de produção, mas em mostrar que esses filmes lidam com a necessidade de contar e acompanhar histórias, as quais tocam miticamente na essência humana. Apenas isso.
Parece ter acontecido, entretanto, um preconceito que muitas vezes se manifesta inconscientemente no que se refere a cultura, que deve ser entendida, de acordo com o Dicionário Houaiss, como “conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social”. Assim, tanto os filmes Melancolia e Árvore da Vida quanto Os Vingadores e Harry Potter são manifestações culturais que, de uma forma ou de outra, expressam valores humanos. E que estão sob o jugo da indústria cultural. Qualquer que seja a qualidade que apresentam.
Existe, entretanto, uma opinião desprovida de ponderação, mas infelizmente bastante generalizada, segundo a qual a dita cultura superior, que exigiria um alto repertório de conhecimentos para ser desfrutada, seria a única a merecer respeito, a merecer ser analisada e estudada. Dentro desse postulado, a chamada cultura inferior, ligada ao populacho, à arraia miúda, ao povão, não exigiria grandes dotes intelectuais e por isso mereceria permanecer no limbo. Essa diferenciação é extremamente nociva, pois abre caminho para algumas posturas hediondas. A principal delas é a instauração de diferentes tipos de discriminação, principalmente a socioeconômica.
Mais uma vez é importante ressaltar que não se está colocando em discussão a qualidade dessas variadas formas de arte. O que se está criticando é a falta de tolerância às inúmeras manifestações humanas. Parece que a desvalorização do que não faz parte do gosto da minha tribo é nada mais do que um instrumento para atacar justamente quem não é da minha tribo. É eliminar a alteridade, a interação, a enriquecedora troca de experiências que só os múltiplos contatos humanos podem proporcionar.
Infelizmente, o que se tem como resultado é o empobrecimento cultural diante dessa postura estanque do indivíduo da classe privilegiada (seja lá o que se entende por essa expressão) rotular como lixo o que vem da classe desfavorecida (seja lá o que se entende por essa expressão) ou então do membro desta por sua vez achar que não é capaz de usufruir ou mesmo de merecer o que foi produzido por aquele estrato. Nada mais nocivo.
Entretanto, o pior está no fato de que muitos dos que se arrogam o direito de defensores da grande arte no fundo meramente arrotam intelectualidade. É o que se percebe na peça humorística do Comédia MTV apresentada acima, a “Gaiola das Cabeçudas”. Há nela uma colagem de algumas composições do “famigerado” funk (O Magriço Cibernético infelizmente não foi capaz de reconhecê-las em sua totalidade) e que jocosamente expressam elementos referentes à dita cultura de alto repertório.
Na verdade, deve-se lembrar que o humor é um instrumento poderoso para que máscaras sejam tiradas e a verdade, ou pelo menos um lado dela, venha à tona. É por isso que esse expediente muitas vezes chegou a ser considerado subversivo. Basta lembrar o ataque que Jorge de Burgos faz à comédia no filme O Nome da Rosa (1986): o riso é maldito e pecaminoso porque poderia incentivar o homem a rir até mesmo de Deus. Assim, Marcelo Adnet e sua trupe, além de zombarem da postura sensualizada do funk, acabam também, conscientemente ou não, por destruir a máscara que alguns supostos intelectuais utilizam ao discriminarem manifestações populares e defenderem os seus próprios gostos. Mas o saber deles é inútil, o que bem mostra o vídeo. Há nele um dos males da inteligentzia brasileira, a valorização de um saber enciclopédico que se concentra na citação até alfabética de grandes pensadores e artistas: Aleijadinho, Beethoven, Camões, Dostoievski, Einstein... Esse aspecto pífio é também percebido na sequência de perguntas sobre futilidades: Quem escreveu 1984? Qual era o cineasta amigo de Picasso? Quem inventou o telefone? O crítico foi a comparação entre Lutero e Kant, que acabou expondo contrastes descabidos e, portanto, ineficientes. Tudo isso faz lembrar as pílulas de conhecimento que Macabéa, protagonista de A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, ouvia pelo rádio durante as madrugadas em que não conseguia dormir: conhecimento inútil, pois em nada melhorou ou mesmo alterou sua vida. A ilusão de sabedoria é apenas um acúmulo de conhecimento. Insignificante e sem significado.
Portanto, a presente produção do Comédia MTV permite perceber que o caráter estanque entre a cultura de alto repertório e a cultura de baixo repertório é empobrecedor para ambos os estratos sociais e, portanto, nocivo para o desenvolvimento cultural de nossa sociedade. O caminho para o crescimento só pode ser adquirido pela tolerância e diálogo e não pelo preconceito.
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