É conhecidíssima a ideia de que a arte
imita a vida. Encontraríamos em suas manifestações, portanto, uma mimese do
mundo tal qual o conhecemos. Mas há também uma variação, que prega que a vida é
que imita a arte. Prova disso é como os produtos estéticos foram capazes de
ditar padrões, comportamentos. Basta lembrar a onda de suicídio coletivo que Werther (1774), de Goethe, provocou na
Europa. Ou, mais recentemente, os modismos inspirados no que a televisão e
cinema produzem. Entretanto, esses dois caminhos, se seguidos à risca, podem
provocar uma diminuição do poder artístico, pois, no caso do primeiro,
submeteria as obras de arte a meros documentários, enquanto o segundo as
empurraria para a doutrinação.
Por sorte, o verdadeiro labor artístico é
mais do que imitação. Sua riqueza está em superar aquilo em que se inspira. É também a sua segurança. Basta lembrar a imagem apresentada no
filme Excalibur (1981), em que Merlin
chamava a realidade de dragão e ainda dizia que olhar diretamente para ele é
ter a alma queimada, ou seja, é entregar-se à loucura. Então, para
enxergá-la melhor, o mais adequado seria observar o seu reflexo – as manifestações
artísticas. E tal é a magia de A
Confissão da Leoa (2012), o mais novo romance do escritor moçambicano Mia
Couto.
A narrativa se baseou na excursão que o
autor fizera pelo norte de Moçambique em 2008, quando se deparou com a notícia
de que leões estavam atacando a população daquela região. Tal qual ocorre em
Kulumani, localidade em que se passa a história. É lá que mora Mariamar,
narradora de metade do livro. A outra metade está a cargo de Arcanjo, caçador
contratado para dar fim ao terror que assola aquela população. Mas há algo mais
do que os nomes mítico-poéticos que os unem, algo mais do que um encontro que
tiveram no passado. Ambos são vítimas de um histórico de vida despedaçado.
Conforme se vai mergulhando nos relatos
que os dois vão montado, esquece-se a expectativa de um reencontro e começa-se
a vislumbrar um painel fortíssimo, típico de Mia Couto. Depara-se com uma
sociedade em que mulher é literalmente vista como não-humana, não-gente; em que
um marido se dá ao direito de costurar (não se está falando em sentido
conotativo!) a vagina da esposa quando ele precisa viajar; em que um pai
abusa sexualmente da filha e esta é que é vista como a vilã; em que uma mulher
é estuprada por um grupo só porque invadiu um espaço sagrado masculino – e ela
ainda ter como resposta a conivência das autoridades.
Todos os exemplos arrolados acima – e há
muitos outros – causam-nos horror, porque estamos de fora, pertencemos a um
mundo dito civilizado. E quando nos defrontamos com o narrado, vemos que, se
parte daquela sociedade encara tudo isso como natural, outra parte, perdedora,
considera-a uma selvageria. Mas esta não faz nada, silencia-se. Somente a
obesíssima Dona Naftalinda, cônjuge do administrador, protesta, mas diante da
inércia do seu meio, não produz eco. E o mais interessante é que se sente nas
entrelinhas um embate entre um velho e um novo mundo, entre uma velha e uma
nova África. Nesse ponto, é preciosa a oposição que é feita entre as galinhas
domesticadas (aliás, grande símbolo das mulheres de Kulumani, massacradas pelo
machismo – aves que não voam) e os urubus que tomam o lugar dessas
aves quando a missão católica portuguesa se vai.
Toca-se aqui em um dos
elementos mais vitais do romance. A necessidade de voar, de liberdade, de direito ao desenvolvimento de todas as potencialidades, misturando-se à
necessidade de sobreviver à miséria. Aqui está a representação da força
feminina, que nutre A Confissão da Leoa.
A força feminina ligada à geração de vida. E ligada à terra, à alimentação, à
sobrevivência. Ligada, portanto, à pátria, à mãe África. Aqui Mia Couto
permite-nos alargar o olhar interpretativo. Fala-se, então, de um continente
desrespeitado, colocado na periferia, explorado durante a colonização e,
independente, massacrado pela guerra civil. É o despedaçamento da pátria que
acaba fabricando os ataques da leoa. Ou que acaba explicando o despedaçamento psicológico das personagens do livro.
Mas como garantir que a fragmentação da
personalidade é apenas fruto de condições externas? E se for verdade a tese
bíblica de que somos todos de um barro ruim? E se o homem mergulhou nessa
matança por sua má índole mesmo? Tanto que essa carnificina ocorreu antes e
depois da independência. Reforçar-se-ia então uma ideia reiteradamente citada
na obra, a de que tudo está dentro de nós. O mal, portanto, não é externo.
Mia Couto, portanto, confirma em A Confissão da Leoa porque é um dos
melhores escritores africanos do século XX, já que mergulha na essência humana
e consegue expô-la. E o faz de uma maneira eficiente, pois seu realismo mágico
acaba se tornando uma válvula de escape para que se veja os destroços com que está lidando. Utilizando-se da linguagem do mito, faz-nos
entender os problemas de nossa essência fazendo-nos vivê-los, senti-los graças à força da bem empregada primeira pessoa. E sem
que precisemos ser moçambicanos para tal. Sua capacidade de enfocar o universal
no regional lembra grande mestres, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos,
Machado de Assis, para ficar nos brasileiros. Vale a pena lê-lo.
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