Na última postagem (17 de abril de 2016), discutiu-se de que maneira o fotojornalismo utiliza a ligação entre
elementos visuais para produzir significado. Outros exemplos dessa atividade serão
abordados hoje, como o do fotógrafo israelense Marc Israel Sellem: Retrata-se aqui o encontro entre a chanceler
alemã Angela Merkel e o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu.
Observe-se a roupa escura, sóbria dos dois. Note-se ainda ao centro a bandeira
israelense ao centro, com o azul que se reflete na blusa que a líder europeia
tem sob seu terninho. Esse mesmo jogo pode ser visto nas laterais da foto entre
a escondida bandeira da Alemanha, que tem o vermelho refletido na gravata do
político de Israel. Há uma harmonia aqui, inclusive pelo fato de o azul,
central, chamar a atenção na política, e o vermelho, periférico, estar parcialmente
oculto pelo braço do político. Esse intercâmbio de elementos parece sugerir a
união entre dois povos que no passado eram inconciliáveis. Poder-se-ia pensar
que feridas estavam finalmente cicatrizadas. No entanto, o fotojornalista põe
denotativa e conotativamente sombra sobre esses fatos. O dedo erguido de
Netanyahu projeta um falso bigode sobre Merkel, fazendo vir à tona a imagem de
Hitler. Novos significados surgem: o olhar de soslaio (malícia?) e o gesto
impositivo do israelense fazem com que não se veja mais o olhar da alemã como
sereno, mas como de alienação à troça que se está fazendo ou, se se levar em
conta a postura curvada dela, como de abatimento diante da triste e irrevogável
realidade: a Alemanha ainda não conseguiu apagar seu passado sombrio.
O mesmo tipo de abordagem, em que o
autor sabe aproveitar na rapidez dos acontecimentos ingredientes fortuitos para
a produção de sentido, pode ser visto a seguir:
Aparentemente, trata-se de uma cena sem
grande riqueza: funcionários da FIFA envolvidos em corrupção foram presos e, no
momento flagrado, ao serem conduzidos para a polícia, são protegidos, em nome
da preservação de identidade contra os olhares de abutre da imprensa. É
interessante o contraste entre o escuro do carro e da roupa dos figurantes,
tanto dos protetores quanto dos infratores, e a brancura do lençol. Aliás,
quase todo o ambiente é marcado pela claridade, quebrada apenas pelo verde da
árvore (sinal de vida?) e pelo escuro dos elementos ligados ao processo criminalístico.
Haveria a significação de tempos mais luminosos chegando ou enxergar isso seria
exagero de interpretação? No entanto, o que é bastante marcante na foto em
análise é o escrito na placa do estabelecimento: “vanity”, que em inglês quer
dizer “vaidade”. Funcionaria como um carimbo, atestando o pecado capital
responsável pelo lamentável desvio de caráter.
Outro exemplo bastante valioso é o da
foto do dinamarquês Mads Nissen, que ganhou o World Press Photo em 2015:
A imagem acima enfoca um momento íntimo de
um casal homoafetivo. Basta notar o carinho delicado que o curvado dedica ao deitado,
que se entrega ao toque, fechando os olhos. Essa ideia de privacidade também
está sugerida pela cortina fechada e pela luminosidade fraca. No entanto, essa
mesma iluminação produz um jogo de luz e sombra que serve para destacar a
escuridão, o que soma à imagem um caráter sombrio. Quando se tem ideia de que
essa fotografia foi produzida para retratar a homossexualidade na Rússia, sua
significação ressalta. Trata-se de uma crítica aos tempos soturnos em que vivem
os russos, com o homossexualismo enfrentando cerceamentos e perseguições
alimentados até mesmo pelas esferas governamentais.
Por fim, um exemplo da Associated Press bastante
intrigante, pois que lembra as intervenções artísticas do politizado Banksy:
Focaliza-se a repressão da polícia turca
a um protesto realizado em Ankara por estudantes universitários em 2014. A beleza
do campo de delicadas flores amarelas produz um efeito bastante agradável aos
olhos, reforçado pela harmonia cromática das figuras de azul. No entanto, o cassetete
erguido de uma delas não nos deixa iludir: um jovem, escondido pela vegetação,
está apanhando. Assim, entendemos que o outro soldado está procurando mais um
alvo. Produziu-se então uma peça de estranha beleza poética marcada pela
ironia, o que provoca uma crítica incômoda do mesmo nível de cenas de Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick.
Enfim, os casos apresentados nesta
postagem e na da semana passada foram suficientes para mostrar que o
fotojornalismo é capaz de gerar sentido pela manipulação de elementos visuais.
O problema está na fronteira bastante tênue entre manipular e distorcer. Essa é
uma questão complexa que entra no mérito de definições como de viés (postagem de 24 de março de 2013) e de realidade, que ainda serão discutidas aqui em
momentos oportunos. Por ora, basta ter em mente que o mais aconselhável é o desenvolvimento
de capacidade crítica constante e alerta para não se deixar levar pelo senso
comum – ou, pior, pelo senso de um grupo jornalístico.
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