Entramos
na Semana Santa, preparação para o momento mais importante do universo cristão:
a Páscoa. Em outros tempos, esse período era tomado de uma rotina diferente,
como ocorrera no século XVII, época da peça acima, transformação em canto do
Salmo 51, de história interessante. O rei Davi unira-se carnalmente a Betsabá,
esposa de Urias. E, para acobertar sua falta, mandara matar o marido dela. O
profeta Natã então advertira o poderoso da gravidade do atentado contra dois mandamentos
divinos (“Não cobiçarás a mulher do próximo” e “Não matarás”), o que provocou no
monarca profundo arrependimento. É nesse momento que, de acordo com a tradição
bíblica, Davi proferiu o belo texto em questão, marcado pela consciência do
pecado, pelo espírito de penitência e pelo pedido de misericórdia.
Na
década de 1630, o italiano Gregorio Allegri compôs essa preciosa peça
para dois corais. O papa Urbano VIII ficou tão encantado com essa obra que a elevou
ao nível do sagrado: determinou que só fosse tocada durante a Semana Santa e
apenas na Capela Sistina. Além disso, decretou que qualquer um que copiasse sua
partitura estaria condenado à excomunhão. Criou-se então uma lenda, que atraiu
mais fatos legendários, como este: Mozart, em 1770, ou seja, com apenas 14
anos, esteve em Roma, ouviu a composição, memorizou-a integralmente e a
transcreveu, permitindo, assim, que essa música saísse dos muros do Vaticano.
![]() |
Gregorio Allegri (1582-1652) |
Mas,
ainda que se dispa Miserere da lenda e
se atente apenas à sua constituição e ao contexto em que está inserido, não tem
como não continuar alçando essa obra ao plano divino. É uma das joias que
carrega tanto a beleza do Renascimento, que é a sua base, quando do Barroco,
para o qual espalha seus valores. Diferente do canto gregoriano, em que o grupo
de vozes exclusivamente masculinas assume um único tom e uma única
configuração, aqui nós temos a harmoniosa multiplicação vocal em inúmeros
perfis sonoros. Sente-se algo do antropocentrismo, já que o homem, como centro
do universo, conquista vocalmente o espaço, ainda que seja para se mostrar
humilde e pedir o perdão divino, valorizando o Senhor – preocupação do
teocentrismo. Basta prestar atenção.
Observe
como o coro desabrocha, cantando a expressão essencial da obra, “miserere mei”
(“tem misericórdia de mim”). Além disso, note como de 24s até 48s a expressão “misercordiam
tuam” (“tua misericórdia”), também importante, vai-se espalhando em diversas combinações
pelo coral. Em 1min19, uma lindíssima voz feminina começa a se sobressair, um
lampejo do que ela será entre 1min41 e 1min59: uma explosão de beleza que se
espalha e se destaca por toda a peça. Ela irá se repetir entre 4min e 4min19, entre
6min13 e 6min35 e entre 8mn35 e 8min55. Faz lembrar o clamor que se eleva para
conquistar a glória divina, mas não há como também não associá-la ao amor de
Deus que se derrama sobre os fieis. Imagem e semelhança: o caráter divino do
criador está na âmago da criatura, por mais impura que ela seja.
O
poder humano, voltado para o seu senhor, é notado um pouco em 2min20 pela forma
como o coro mostra sua força. Mas ele se mostra mais belo entre 2min44 e
3min08. É arrepiante como os melismas (vogais que se espalham por várias notas
musicais) se manifestam, a indicar a capacidade que o homem possui. Esse
esquema vai também aparecer entre 7min17 e 7min42. Mesmo contrita, humilhada e
arrependida, a criação não deixa de mostrar seu potencial. Sabe-se criatura
especial, pois tem em si a essência divina e é ela que pode conduzi-lo à
elevação.
Ainda
que em tempos laicos, ainda que para espíritos ateus, a sublimidade de Miserere é um alento de esperança bastante
útil para os tempos sombrios em que vivemos, pois é capaz de mostrar que, por
mais indignos que sejamos (e não se deve pensar apenas em questões religiosas),
temos uma essência que é capaz de produzir ações elevadas. Felizmente.
Quinta, 14 de abril, às 19h30,
SESC Ribeirão Preto
Nenhum comentário:
Postar um comentário