Memórias Póstumas de Brás Cubas é o romance com o qual Machado de Assis inaugurou o Realismo Brasileiro em 1881, um feito que está completando, portanto, 131 anos. E essa distância no tempo parece ter inspirado alguns discursos bastante curiosos, como a crítica de uma suposta Gabriela Klein, estudante do 3º ano de uma escola estadual de Carapicuíba (SP). De acordo com tal julgamento, veiculado em 2011 no Orkut, o grande romancista fluminense faria parte da preferência de bancas de vestibulares desatualizadas, que deveriam cobrar livros menos doentios e mais ligados ao universo cultural dos estudantes, como Harry Potter e Crepúsculo, “grandes obras da atualidade”.
É boa a possibilidade de esse comentário não passar de um fake com intenção humorística. Nesse ponto, tornou-se bastante eficiente. Entretanto, O Magriço Cibernético já viu observações desse mesmo quilate, como em uma conceituada revista de economia, que se queixava do fato de Machado, apontado como dono de linguagem antiquada e de assuntos desinteressantes, tornar-se leitura obrigatória para nossos estudantes de Ensino Médio. Aliás, por que essas revistas colocam economistas para discutir educação? Eis o mistério da fé...
A falta de conhecimento pedagógico invalida facilmente análises como as observadas acima. Entretanto, o preocupante é que esse discurso encontra eco em gente que está dentro de colégios, até mesmo dirigindo instituições de ensino. Há “educadores” que criticam a presença no currículo escolar de livros como Auto da Barca do Inferno, Memórias de um Sargento de Milícias, Memórias Póstumas de Brás Cubas, vistos como incapazes de atrair a atenção do aluno e que, portanto, se tornam desinteressantes e ineficientes em sua proposta de ensino. Alguns desses “pedagogos” chegam mesmo a defender a substituição por obras mais próximas do universo cultural dos adolescentes, como as escritas por Paulo Coelho, J. K. Rowling e Stephenie Meyer. Será que esses docentes foram professores de Gabriela Klein?
A apreciação de todo esse contexto permite perceber que alguns problemas têm se espalhado em nosso meio educacional. Em primeiro lugar, esqueceu-se de que a função da escola é acrescentar, não é redundar. Ela pode se utilizar do universo cultural dos seus estudantes, mas para ampliá-lo. Nesse ponto, até é possível usar a saga Harry Potter, rica de referências literárias e mitológicas, para fazer o aluno alçar voos mais ousados. O mesmo pode ser feito com a série Crepúsculo, fruto de um caldo requentado dos clichês românticos dos séculos XVIII e XIX. Dela pode-se fazer o aluno ampliar o seu repertório cultural e buscar as matrizes do que tanto o seduz nessas narrativas açucaradas. Quanto a Paulo Coelho, seu conteúdo é tão raso que parece não possibilitar algum trabalho sobre ele. Não é uma literatura péssima, mas não adiciona muito ao seu leitor.
Já Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma obra riquíssima. Pode ser chata se mal trabalhada em sala de aula. Se simplesmente se atira o livro como obrigação para o aluno ler e não se dá qualquer apoio ou subsídio, é óbvio que o jovem vai ficar perdido diante de tanto conteúdo e terminará por qualificar o romance como enfadonho. É o que provavelmente acontece na maioria das nossas escolas, o que pode ser comprovado pela ojeriza que muitos adolescentes têm em relação a esse livro. Muitos acabam finalmente se encantando com ele quando finalmente são orientados adequadamente. E é o que O Magriço Cibernético vai se propor a fazer neste post.
Por que Memórias Póstumas de Brás Cubas é um excelente romance? Seu estilo é delicioso, enxuto, algo entre a galhofa e a melancolia, como aponta seu narrador. Um clássico da literatura. O próprio Woody Allen em 2011, durante as entrevistas para o lançamento de seu filme Meia-Noite em Paris, declarara que era um dos cinco melhores livros que já havia lido. Chegou inclusive a dizer que tinha a sensação de que o livro fora escrito recentemente. E o cineasta nova-iorquino conseguiu enxergar um ponto essencial da obra: ela ainda se faz atual, conseguindo mostrar os mecanismos de funcionamento de nossa sociedade e de nossa existência. E de uma maneira mais eficiente que a Sociologia e a História, pois que vai pelo caminho estético, fixando-se mais firmemente em nosso intelecto.
Para o leitor desacostumado essa qualificação extremamente positiva pode parecer exagerada, pois o livro possuiria dois graves defeitos. O primeiro seria a constante utilização da digressão, ou seja, da quebra da linearidade narrativa para a introdução de observações periféricas sobre filosofia, literatura, política, história, mitologia e até mesmo assuntos banais, como a validade de se usar botas apertadas ou a presença funesta de uma borboleta preta. Mas é justamente neste ponto que recai um dos grandes valores da obra. Trata-se se um recurso que impedirá que o leitor se envolva com a trama, o que manterá um distanciamento, uma imparcialidade, fundamental para que sejam percebidas as críticas que o autor pretende veicular. Além disso, essas digressões possibilitarão que se una o nacional ao universal, o atemporal ao contemporâneo. Assim, mais uma vez estará garantida a apresentação de problemas cruciais de nossa civilização.
O segundo “defeito” de Memórias Póstumas de Brás Cubas é que a sua narrativa no fundo é uma não-narrativa. Seu protagonista é um inútil. Sua biografia é simplesmente uma coleção de fracassos. É o que fica bem assinalado no último capítulo, “Das Negativas”, em que se faz um balanço de sua existência. E o título já diz tudo. Assim, qual seria a importância de se ler sobre a vida de alguém que não fez nada de importante?
A resposta a essa pergunta e a intenção de Machado de Assis ao criar o seu romance ficam nítidas quando se tem em mente que o protagonista é um membro da elite burguesa brasileira. Percebe-se então uma proposta de desancar a classe dominante brasileira, o que é feito de maneira sutil. Para tanto, o autor não precisou se utilizar da crítica descarada em terceira pessoa, como se vê nas obras de Eça de Queirós e tantos outros escritores realistas. Simplesmente deu voz a um membro da famigerada classe alta para, assim, com o seu próprio discurso, pôr a nu sua mediocridade. Em linguagem de adolescente: “ele próprio queima o seu filme”.
Dessa forma, notamos nos vários capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas a busca incessante por status que fará com que Luís Cubas, pai do protagonista, ridiculamente esconda as origens de sua família. Ou que a personagem principal perca a vida em busca de um remédio que curará a humanidade da melancolia. Não se iludam – não é com intenção altruísta que ele se dedica a esse propósito, mas movido puramente pelo egoísmo: ele sonha em ver seu nome impresso em cada vidrinho em cada lar da civilização. Essa preocupação com status fará Lobo Neves engolir a fama de marido traído, fingindo não saber o que está acontecendo. E essa mesma preocupação fará Virgília viver sua relação adulterina, mas sem querer se separar do marido – não quer sofrer as dificuldades de mulher separada.
Notamos também as incoerências de uma elite que se diz ilustrada, adepta do Liberalismo, que comemora a queda de Napoleão – o que é encarado como o triunfo da Liberdade – e ao mesmo tempo negocia escravos e, pior, ganha o pão à custa do suor alheio (diga-se: negro). E tudo isso é cruelmente legitimado pelo fato de Prudêncio, tendo sofrido horrores na infância com o sinhozinho Brás Cubas, ao conseguir a alforria, imediatamente comprar um cativo e descarregar neste tudo o que havia recebido do branco.
Mas o tema da exploração não se restringe na relação racial. Está espraiado no nosso tecido social. Vemo-lo na união que Marcela mantém com o jovem Brás Cubas. Ela o amou durante “quinze meses e onze contos de réis”. Enquanto havia dinheiro, havia “amor”. Vemo-lo também na utilização de D. Plácida como protetora de uma vergonhosa relação adulterina. Mas era isso ou morrer de fome. E reforça-se a cínica tese do narrador de que todo homem tem um preço. Vemo-lo ainda no surgimento de Eulália Damasceno de Brito, num enlace matrimonial de duplo interesse em que o amor conjugal é apenas um detalhe. O que interessa é que o nome Cubas estaria limpo dos escândalos adulterinos e em troca os Damasceno de Brito, emergentes, ganhariam aceitação social.
O mais interessante é que tudo isso é narrado por um defunto-autor. Aqui se manifesta mais uma vez a maestria com que Machado de Assis manipula o foco narrativo. Seu enunciador já está morto e por isso não tem contas a pagar com a sociedade à qual pertenceu. É por isso que conseguirá expor um painel cortante, agressivo não só de si mesmo, mas também do meio do qual fez parte. E que de certa forma não mudou nesses 131 anos. Mas isso só será percebido por aqueles que têm capacidade de ler as entrelinhas. Que sem dúvida não são Gabriela Klein e seus asseclas.